Na tarde do dia 27 de setembro
do ano da graça de 2019, fui ao Auditório da Associação de Docentes da UnB
assistir a uma palestra que seria proferida por Mia Couto, o escritor
moçambicano que deixa encantado quem lê suas estórias sobre o povo moçambicano.
Rapaz, eu esperava assistir a
uma empolgada fala sobre literatura e me decepcionei.
Desde a apresentação inicial
pelo vice-reitor e em seguida pela reitora, fui atingido por uma torrente de
reclamações contra o autoritarismo vigente no Brasil, tudo exalado de forma
sutil e sub-reptícia.
Além da denúncia do autoritarismo
que diziam atingir a UnB, também exaltaram a falta de liberdade a que nós
brasileiros estamos submetidos.
É incrível o que a ideologia pode
produzir: em uma reunião acadêmica, professores e militontos (o termo não é
meu, foi criado por Frei Betto, e pode ser encontrado em “A Mosca Azul” ou em “Calendário
do Poder”, textos do religioso em pauta), ensandecidos após a fala dos
dirigentes máximos da universidade, desandaram a entoar o mote “Lula livre” ao
mesmo tempo em que brandiam faixas com o mesmo dístico.
Para mim, que tinha me deslocado
apenas para assistir a uma palestra acadêmica, foi um espetáculo fora de lugar,
além de deprimente.
Mas o pior ainda estava por vir.
Mia Couto nos foi apresentado,
teve o currículo lido e assumiu uma tribuna para dar início à sua tão esperada
palestra sobre literatura.
Eu esperava que lhe dessem uma
mesa, uma cadeira, um copo d’água e um cafezinho, como é de praxe nesse tipo de
ocasião. Nada disso apareceu. O grande escritor tinha que falar de pé mesmo.
A palestra revelou-se um zero à
esquerda, literalmente. O grande escritor começou por fazer uma brincadeira: de
uma só vez, contou e separou seis páginas do texto que havia preparado para
aquele tão aguardado momento, alegando que não iria tomar o nosso tempo. A audiência
entrou em delírio, estrondaram gargalhadas e mais gargalhadas pelo auditório.
Continuei esperando pelo grande
discurso do admirável escritor que muito respeito. Esperei em vão.
Em seguida, avisaram-nos que Mia
Couto responderia às perguntas das pessoas que se deslocaram para assisti-lo,
bastava que se levantasse o braço e seríamos atendidos.
Novamente me enganei. Um fiasco,
as respostas do maravilhoso escritor aos questionamentos dos seus
interlocutores.
Decepcionado, me perguntei o porquê
daquela embromação acadêmica preparada com tanta antecedência, com bastante
divulgação no decorrer do primeiro semestre letivo da instituição em 2019, e
que, na abertura do encontro, recebeu autoelogios proferidos pelos professores
dirigentes da UnB.
De repente, fui me dando conta do
que poderia ter acontecido por trás dos bastidores acadêmicos antes daquela tão
esperada palestra.
Ora, ora, meus senhores, o Mia
Couto estava cansadíssimo!
Eureka! Convidaram o moço para vir
à UnB fazer uma palestra em um evento tradicional da instituição, a Semana
Universitária e, possivelmente, antes da sua fala, devem tê-lo ocupado com
reuniões de trabalho com os professores dos diversos departamentos,
aproveitando tão ilustre presença no campus universitário. Para discutir seja
lá o que pode ter sido discutido, e isto o deixou extenuado, como era visível aos
olhos mais atentos.
Não posso apresentar provas do que
estou imaginando. Mas o estado de prostração e as falas do discurso improvisado
inicial e as suas respostas às perguntas do público, justificaram o meu Eureka!
Entristeceu-me ver e ouvir Mia
Couto destilar respostas salpicadas de alusões á falta de liberdade e da
vigência de autoritarismo cercando o sistema universitário brasileiro... “y
otras cositas más”.
Pior foi suportar a qualidade das
respostas do grande escritor, sempre incompletas, mal estruturadas, cansadas,
enfastiadas, até desrespeitosas para com a inteligência e o grau de
conhecimentos de uma audiência universitária.
Por exemplo, houve uma pergunta
sobre a questão do suicídio entre os jovens, encaminhada por uma docente ainda
sofrendo pelo suicídio praticado, nas imediações da Biblioteca Central da UnB,
por um jovem universitário na semana anterior ao evento. A professora, uma
educadora, pedia que Mia Couto avançasse alguma reflexão sobre a necessidade de
os jovens cultivarem a esperança em tempos tão violentos, tão desrespeitosos
dos direitos humanos.
A resposta de Mia Couto nada disse
que pudesse ser aproveitado pela juventude presente, como caminho para que
aprendessem a suportar os embates, as ilusões, os conflitos e o desespero que o
ato de viver nos impõe a cada dia, seja na própria casa, nas salas de aula ou
mais tarde no ambiente de trabalho.
Enfim, Mia Couto esqueceu-se do “componente
civilizatório intrínseco à missão do escritor”, que se impõe ao seu dever como
escritor, e que consistiria em aproveitar um momento único como o deste
encontro e contribuir para “alargar a imaginação moral dos seus leitores” e admiradores.
O que resgatou o evento de fracasso
maior foi uma pergunta de uma aluna do segundo semestre do curso de Letras,
portadora de deficiência física e de fala, que lançou o seguinte desafio ao
escritor/pensador: “Para o senhor, qual o significado da palavra?”.
Considerei a resposta a tão fundamental
questão, proposta pela aluna, muito chocha. Com certeza, um questionamento filosófico
de tamanho alcance poderia ter sido mais bem explorado, em especial por alguém
que se tornou famoso no mundo das letras portuguesas por saber exibir, por meio
da palavra, as emoções e descobertas da vivência cotidiana do homem africano
que foi submetido ao domínio colonialista português durante largo espaço de
tempo.
Para mim, a ideologia de esquerda
que domina o meio acadêmico federal brasileiro só pode produzir espetáculos
como este que tive o desprazer de vivenciar na tarde de hoje na UnB. Este tipo
de espetáculo representa apenas perda de tempo acadêmico, e se transforma em
uma inútil oposição política ou resistência a um governo que tenha sido legal e
legitimamente eleito pelo voto democrático da maioria do eleitorado.
Enfim, a ideologia cega àqueles que
a abraçam, e a ultrapassada ideologia que aviva a chamada esquerda à brasileira,
circulante em nosso meio acadêmico federal, os faz prisioneiros de um
pensamento e discurso únicos que invocam o apoio do comportamento “politicamente
correto”, um conveniente modismo importado da Europa e dos Estados Unidos, para
não aceitar qualquer referência que possa contradizê-lo.
.
Quanto ao comportamento verbal de Mia Couto, nesta palestra que foi sem
nunca ter sido, nada se pode reclamar, apenas constatar como é difícil entender
porque o vivente humano se entrega tão facilmente às visões ideológicas do
mundo, criadas por outros homens com o intuito de defender interesses muitas
vezes ultrapassados e nefastos.
Afligiu-me uma dúvida: será que Mia Couto, que escreve tão lindamente em
português, exaltando as palavras com as cores fortes do nosso idioma miscigenado
aos dialetos moçambicanos, é também um militante de esquerda? Se acontecer de
esta minha dúvida boba ser verdade, nada tenho a opor contra uma livre escolha
de um cidadão consciente e muito inteligente.
Enfim, nessa tarde, na UnB, eu pude compreender que a
ideologia exerce uma influência tão forte sobre a consciência e a inteligência
do homem que tanto pode cooptá-las como corrompê-las.
E mais: não importam quais sejam as
experiências vivenciais do indivíduo e o brilho de uma mente privilegiada, a
consciência e a inteligência não resistem ao cerco ideológico que lhe fazem, e
terminam por se amoldar às mentiras e aos sonhos descabidos e autoritários
daqueles que a cercam.
E foi assim que um dos meus
escritores preferidos, que me toca profundamente a alma, na UnB escolheu
ficar de cócoras com os sapos barbudos daquela terra dominada por um pensamento
e discurso únicos, atropelando com este gesto o conceito de liberdade que tanto
defende em sua nobre literatura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Lembre-se, você é responsável por sua opinião publicada neste blog!