quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Mia Couto e a corrupção da inteligência


         
     Na tarde do dia 27 de setembro do ano da graça de 2019, fui ao Auditório da Associação de Docentes da UnB assistir a uma palestra que seria proferida por Mia Couto, o escritor moçambicano que deixa encantado quem lê suas estórias sobre o povo moçambicano.

          Rapaz, eu esperava assistir a uma empolgada fala sobre literatura e me decepcionei.

             Desde a apresentação inicial pelo vice-reitor e em seguida pela reitora, fui atingido por uma torrente de reclamações contra o autoritarismo vigente no Brasil, tudo exalado de forma sutil e sub-reptícia.

              Além da denúncia do autoritarismo que diziam atingir a UnB, também exaltaram a falta de liberdade a que nós brasileiros estamos submetidos.

              É incrível o que a ideologia pode produzir: em uma reunião acadêmica, professores e militontos (o termo não é meu, foi criado por Frei Betto, e pode ser encontrado em “A Mosca Azul” ou em “Calendário do Poder”, textos do religioso em pauta), ensandecidos após a fala dos dirigentes máximos da universidade, desandaram a entoar o mote “Lula livre” ao mesmo tempo em que brandiam faixas com o mesmo dístico.

             Para mim, que tinha me deslocado apenas para assistir a uma palestra acadêmica, foi um espetáculo fora de lugar, além de deprimente.
            Mas o pior ainda estava por vir.

             Mia Couto nos foi apresentado, teve o currículo lido e assumiu uma tribuna para dar início à sua tão esperada palestra sobre literatura.

             Eu esperava que lhe dessem uma mesa, uma cadeira, um copo d’água e um cafezinho, como é de praxe nesse tipo de ocasião. Nada disso apareceu. O grande escritor tinha que falar de pé mesmo.

             A palestra revelou-se um zero à esquerda, literalmente. O grande escritor começou por fazer uma brincadeira: de uma só vez, contou e separou seis páginas do texto que havia preparado para aquele tão aguardado momento, alegando que não iria tomar o nosso tempo. A audiência entrou em delírio, estrondaram gargalhadas e mais gargalhadas pelo auditório.

             Continuei esperando pelo grande discurso do admirável escritor que muito respeito. Esperei em vão.
        
              Em seguida, avisaram-nos que Mia Couto responderia às perguntas das pessoas que se deslocaram para assisti-lo, bastava que se levantasse o braço e seríamos atendidos.
             Novamente me enganei. Um fiasco, as respostas do maravilhoso escritor aos questionamentos dos seus interlocutores.

             Decepcionado, me perguntei o porquê daquela embromação acadêmica preparada com tanta antecedência, com bastante divulgação no decorrer do primeiro semestre letivo da instituição em 2019, e que, na abertura do encontro, recebeu autoelogios proferidos pelos professores dirigentes da UnB.

             De repente, fui me dando conta do que poderia ter acontecido por trás dos bastidores acadêmicos antes daquela tão esperada palestra.

            Ora, ora, meus senhores, o Mia Couto estava cansadíssimo!

            Eureka! Convidaram o moço para vir à UnB fazer uma palestra em um evento tradicional da instituição, a Semana Universitária e, possivelmente, antes da sua fala, devem tê-lo ocupado com reuniões de trabalho com os professores dos diversos departamentos, aproveitando tão ilustre presença no campus universitário. Para discutir seja lá o que pode ter sido discutido, e isto o deixou extenuado, como era visível aos olhos mais atentos.

            Não posso apresentar provas do que estou imaginando. Mas o estado de prostração e as falas do discurso improvisado inicial e as suas respostas às perguntas do público, justificaram o meu Eureka!

             Entristeceu-me ver e ouvir Mia Couto destilar respostas salpicadas de alusões á falta de liberdade e da vigência de autoritarismo cercando o sistema universitário brasileiro... “y otras cositas más”.

             Pior foi suportar a qualidade das respostas do grande escritor, sempre incompletas, mal estruturadas, cansadas, enfastiadas, até desrespeitosas para com a inteligência e o grau de conhecimentos de uma audiência universitária.

            Por exemplo, houve uma pergunta sobre a questão do suicídio entre os jovens, encaminhada por uma docente ainda sofrendo pelo suicídio praticado, nas imediações da Biblioteca Central da UnB, por um jovem universitário na semana anterior ao evento. A professora, uma educadora, pedia que Mia Couto avançasse alguma reflexão sobre a necessidade de os jovens cultivarem a esperança em tempos tão violentos, tão desrespeitosos dos direitos humanos.

            A resposta de Mia Couto nada disse que pudesse ser aproveitado pela juventude presente, como caminho para que aprendessem a suportar os embates, as ilusões, os conflitos e o desespero que o ato de viver nos impõe a cada dia, seja na própria casa, nas salas de aula ou mais tarde no ambiente de trabalho.

            Enfim, Mia Couto esqueceu-se do “componente civilizatório intrínseco à missão do escritor”, que se impõe ao seu dever como escritor, e que consistiria em aproveitar um momento único como o deste encontro e contribuir para “alargar a imaginação moral dos seus leitores” e admiradores.   

            O que resgatou o evento de fracasso maior foi uma pergunta de uma aluna do segundo semestre do curso de Letras, portadora de deficiência física e de fala, que lançou o seguinte desafio ao escritor/pensador: “Para o senhor, qual o significado da palavra?”.

            Considerei a resposta a tão fundamental questão, proposta pela aluna, muito chocha. Com certeza, um questionamento filosófico de tamanho alcance poderia ter sido mais bem explorado, em especial por alguém que se tornou famoso no mundo das letras portuguesas por saber exibir, por meio da palavra, as emoções e descobertas da vivência cotidiana do homem africano que foi submetido ao domínio colonialista português durante largo espaço de tempo.

           Para mim, a ideologia de esquerda que domina o meio acadêmico federal brasileiro só pode produzir espetáculos como este que tive o desprazer de vivenciar na tarde de hoje na UnB. Este tipo de espetáculo representa apenas perda de tempo acadêmico, e se transforma em uma inútil oposição política ou resistência a um governo que tenha sido legal e legitimamente eleito pelo voto democrático da maioria do eleitorado.   

           Enfim, a ideologia cega àqueles que a abraçam, e a ultrapassada ideologia que aviva a chamada esquerda à brasileira, circulante em nosso meio acadêmico federal, os faz prisioneiros de um pensamento e discurso únicos que invocam o apoio do comportamento “politicamente correto”, um conveniente modismo importado da Europa e dos Estados Unidos, para não aceitar qualquer referência que possa contradizê-lo.

  .       Quanto ao comportamento verbal de Mia Couto, nesta palestra que foi sem nunca ter sido, nada se pode reclamar, apenas constatar como é difícil entender porque o vivente humano se entrega tão facilmente às visões ideológicas do mundo, criadas por outros homens com o intuito de defender interesses muitas vezes ultrapassados e nefastos.

            Afligiu-me uma dúvida: será que Mia Couto, que escreve tão lindamente em português, exaltando as palavras com as cores fortes do nosso idioma miscigenado aos dialetos moçambicanos, é também um militante de esquerda? Se acontecer de esta minha dúvida boba ser verdade, nada tenho a opor contra uma livre escolha de um cidadão consciente e muito inteligente.

            Enfim,  nessa tarde, na UnB, eu pude compreender que a ideologia exerce uma influência tão forte sobre a consciência e a inteligência do homem que tanto pode cooptá-las como corrompê-las.

            E mais: não importam quais sejam as experiências vivenciais do indivíduo e o brilho de uma mente privilegiada, a consciência e a inteligência não resistem ao cerco ideológico que lhe fazem, e terminam por se amoldar às mentiras e aos sonhos descabidos e autoritários daqueles que a cercam.

           E foi assim que um dos meus escritores preferidos, que me toca profundamente a alma, na UnB escolheu ficar de cócoras com os sapos barbudos daquela terra dominada por um pensamento e discurso únicos, atropelando com este gesto o conceito de liberdade que tanto defende em sua nobre literatura. 

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