quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Para muito além da República Madisoniana

As últimas eleições norte-americanas denunciaram o fim do aristocrático modelo de República democrática, alicerçada em um sistema eleitoral viciado, imaginada por James Madison e discutida especialmente com Alexander Hamilton e John Jay nos artigos reunidos sob o nome de O Federalista, trabalho que os tornou conhecidos como os Pais Fundadores da Constituição e da moderna República dos Estados Unidos, após a guerra contra o domínio inglês, depois de dez anos de acirradas discussões que tiveram início com as Convenções de Virgínia e Anapólis e culminaram com a Convenção Constitucional na Filadélfia, em 1787, que iria se sustentar por mais de dois séculos e servir de modelo para constituições de inúmeros outros países no mundo inteiro, o Brasil inclusive.
Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata, “ganhou, mas não levou”, ou seja, obteve mais votos diretos do eleitorado votante, perto de um milhão de votos, do que o candidato Donald Trump, do Partido Republicano, que, no entanto, foi considerado o vencedor do pleito.

Pergunta o mundo inteiro, atento ao evento político nos Estados Unidos: como é possível que tal reversão possa acontecer em tão democrático sistema eleitoral, exemplo para o mundo há mais de duzentos anos?

Ora, tal reversão, ou melhor, vergonhosa contradição, só pode acontecer graças ao aristocrático modelo eleitoral vigente nos Estados Unidos, planejado com o precioso detalhe que permite àquele que é derrotado na apuração do voto direto alcançar a vitória definitiva se conseguir a maioria dos votos dos delegados representantes de cada unidade da federação, e esta não foi a primeira vez em que se apelou para a interpretação de regras do sistema eleitoral para decidir uma eleição já conquistada pelo voto direto: em 2000, o candidato do Partido Republicano George Bush, o  filho, ganhou as eleições presidenciais apelando para o julgamento da Suprema Corte de Justiça do país, e assim derrotando Al Gore, candidato pelo Partido Democrata, que obtivera mais votos diretos que ele.      

Dessa vez, antes mesmo do início da campanha eleitoral, Donald Trump soube identificar um país sempre dividido, desde 1861, pelo racismo que nunca acaba, apesar da resistência de negros como Martin Luther King, hoje muito mais pelo mau desempenho da economia nacional em consequência de vários fatores econômicos e sociais, causados, em parte, pelo processo de globalização que eliminou e transferiu indústrias para outros países e milhões de empregos foram destruídos, associado ao avanço tecnológico que privilegia o setor de serviços, além da ação de políticos e administradores públicos que privilegiam regras espúrias impostas por agentes do sistema financeiro, e graças a esse estado da arte, ele foi capaz de criar um discurso político de oposição que prometia “fazer a América grande mais uma vez” (Make America great again), recuperando-se as indústrias e os empregos perdidos, além de definir uma estratégia de campanha que concentrou seus ataques carregados de xenofobia, racismo, sexismo, misoginia, negação da vigente destruição do meio ambiente e divisão geopolítica do mundo com Vladimir Putin, que resumiram o descontentamento de metade dos cidadãos brancos norte-americanos herdeiros das sementes do racismo semeadas no terreno fértil da Guerra de Secessão, falando repetidas vezes para plateias de delegados das unidades federadas que reuniam os maiores números de delegados, os chamados “swinging states”, como Ohio, Iowa, Wisconsin, Pensilvânia, Michigan e Florida.

Em O Federalista, inúmeras vezes James Madison argumentou que a democracia popular era perigosa, e por isso mesmo a direção da nova República que surgia esplendorosa para o mundo devia ser delegada, pela via eleitoral do sufrágio universal, a sábios representantes do povo que fariam as leis no Legislativo para que o Executivo administrasse o país em nome de todos, e ao Judiciário caberia decidir sobre possíveis enfrentamentos conflituosos entre cidadãos, empresas e instituições. Foi bom enquanto durou, por pouco mais de dois séculos, mas o modelo chegou a um impasse: ou muda ou muda.

Antes de se eleger presidente da República norte-americana, em 2016, Donald Trump declarou em entrevista: “The electoral system is a disaster for democracy”, traduzindo: “O sistema eleitoral é um desastre para a democracia”; mas todos nós sabemos que ele é um perigoso demagogo que repete as visões de mundo de consultores conservadores e reacionários, um multimilionário empresário que se jactou perante as câmeras de televisão de sua esperteza como sonegador de impostos, de seu poder como macho estuprador, e que parece, nesta fase de sua vida, ter decidido brincar de político salvador da pátria, e para isso não hesitou em tomar de assalto o Partido Republicano e atropelar velhas e novas lideranças políticas para se candidatar ao cargo de Presidente da República, e, por ironia, elegeu-se graças ao modelo de sistema eleitoral que não mais critica nem considera um desastre, pois foi esta arquitetura eleitoral que lhe permitiu botar as mãos nas rédeas do poder republicano mais poderoso do planeta.

Divulgado o resultado das últimas eleições nos Estados Unidos, a metade do eleitorado que não aceita Donald Trump como presidente do país foi imediatamente para as ruas em protesto enraivecido, portando cartazes em que se podia ler “Mein Trump”, em alusão indignada ao livro “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, ou, simplesmente, “Power to the people” (Poder para o povo), quem sabe referindo-se à maioria de votos dados nas urnas à candidata Hillary Clinton, enquanto o milionário transformado em político populista denunciava que tais manifestações seriam fruto de incitamento da mídia, como se ele não soubesse que o país, incitado pelo seu discurso de campanha, mostrou um eleitorado perfeitamente dividido entre as visões de mundo dos dois candidatos presidenciais.

Enfim, os mortos continuam governando os vivos, e se a metade do eleitorado norte-americano, que apoia Donald Trump, sonha com a possibilidade do retorno das fábricas do “rust belt”, perdidas, junto com milhares de empregos, graças ao processo de globalização da economia, a outra metade que não o aceita como presidente também sonha, provavelmente sem o saber, com o retorno do modelo grego da antiga cidade de Atenas, de mais de quatro mil anos atrás, em que os representantes do povo eram democraticamente eleitos de acordo com um sistema eleitoral bi-representativo, pelo prazo de apenas um ano, em no máximo duas vezes não consecutivas, combinando-se eleições para certos cargos públicos e sorteio para outros, mas, com certeza, pelo menos parte desse eleitorado é sabedor da realização, hoje, de modelos representativos diretos na prática de vários países europeus e até de algumas unidades federativas canadenses, um verdadeiro experimento em movimento que os nossos políticos ainda não se deram conta de sua existência ou preferem ignorá-lo.

 A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos trará, com certeza, uma reviravolta no modo de governança do país, mais ainda por poder contar com as maiorias conquistadas pelos republicanos nas duas casas do Congresso, restando-nos esperar para assistir ao tumulto que será gerado pela ascendência de uma visão populista ancorada em promessas que não serão cumpridas, acompanhada de visões políticas conservadoras e reacionárias, tudo isto atado ao capitalismo financeiro dominante, que poderão virar o mundo de ponta-cabeça, bastando pensar numa aliança dos Estados Unidos com a Rússia contra os terroristas do Estado Islâmico e o avanço capitalista da China, uma grande parceira do capitalismo norte-americano, detentora de bilhões de dólares em títulos da dívida pública do grande irmão do Norte e de um arsenal atômico nas mãos de um poderoso exército não propriamente brancaleone.

Porém, o populismo que rejeita o pluralismo inerente à democracia numa sociedade complexa como os Estados Unidos, à semelhança do populismo petista que associa Dona Zelite ao  “nós” contra “eles” que conhecemos, em poucas palavras, todas as imagens negativas e assustadoras criadas e usadas por Donald Trump para convencer os homens brancos norte-americanos atingidos pelos efeitos da globalização da economia, um movimento econômico irreversível que se aperfeiçoa a cada cem anos, pode não passar de mais uma esperteza de um arrogante empresário que construiu um personagem para ser abandonado tão logo proclamado o resultado favorável das urnas.

O sistema eleitoral adotado pelos norte-americanos se espraiou pelo chamado mundo ocidental que se considera democrático, e carregou consigo a possibilidade de arranjos viciados que levam, inevitavelmente, a uma desenfreada corrupção que, no tempo cotidiano, muito mais do que no passado, se aproveita do poder da telemática geradora de imagens que envolvem e dominam corações e mentes da cidadania, seja ela pouco ou muito esclarecida quanto aos subterrâneos da política, e atraindo em especial os mais poderosos empresários de qualquer sociedade complexa que, para sustentar sua necessária sobrevivência na feroz competição de mercado, se oferecem para qualquer negócio que os líderes, grupos e partidos políticos lhes ofereçam.

O grande dilema da democracia dos dias de hoje, em qualquer quadrante do globo, está entranhado nos descaminhos do sistema eleitoral fundado no sufrágio universal, em especial porque separa o eleitor do representante eleito logo depois de proclamado o resultado cravado nas urnas, que recebem papel ou eletrônicas, como declarou Edmund Burke, o célebre político e pensador inglês que, no século dos oitocentos, não admitia ter que se submeter às demandas do seu eleitorado quando no exercício parlamentar.

Nem mesmo quando se criam mecanismos de cobrança popular ao sistema político, inseridos tantas vezes nas cartas constitucionais, se consegue cercear o dinamismo da criatividade desonesta de representantes políticos que se encastelam nos poderes Executivo e Legislativo e avançam sobre as finanças públicas, levando, pelo nefasto exemplo do assalto aos dinheiros arrecadados do povo, ao incremento assustadoramente progressivo da corrupção no interior das organizações do Estado, atraindo não só ricos empresários, mas toda e qualquer mente desonesta de qualquer escalão de governo ou classe social que consiga imaginar formas de se apossar de recursos financeiros sob a guarda de instituições públicas.

  James Madison temia a capacidade de ação das facções políticas, pois é assim que aborda, reflete e argumenta quando, em artigo no O Federalista, aponta os grupos que começavam a se formar, em sua época, interessados em agir no campo da política, que a partir de 1850 ganharam a denominação de partidos políticos, e que Robert Michels, sociólogo alemão, descobriu sobreviverem sempre dominados por uma Lei de Ferro das Oligarquias.

 Em outras palavras, os partidos políticos são dominados por uma meia dúzia de indivíduos que conseguem se instalar nos altos postos de direção partidária e dali não mais se deixam abalar, transformando-se nos verdadeiros donos desses partidos políticos, e fazendo deles organizações para negociatas em troca, especialmente no caso brasileiro, de verbas do Fundo Partidário e de apoio político aos governos, porque, sem este último, os eleitos para o exercício de cargos no poder Executivo nada conseguem realizar, paralisados pelas regras escritas do jogo político vigente, inseridas adequadamente nos Regimentos das Casas Legislativas, associadas à pauta de ação dos parlamentares desses partidos políticos que, por sua vez, prisioneiros de um circuito vicioso, estão obrigados a obedecer às ordens das oligarquias partidárias dominantes nesse importante espaço institucional do mundo democrático moderno. 

E assim o povo, em duas palavras, os eleitores, são postos de lado, legalmente, das discussões, das disputas em torno de temas que os afetam profundamente em seu cotidiano, enquanto são debatidos nos gabinetes das lideranças partidárias ou nas arenas de comissões técnicas, mas na verdade absolutamente obscuras e isoladas, no interior dos parlamentos do Poder Legislativo mundo afora, ao mesmo tempo em que parte da mídia eletrônica e impressa somente enxerga e divulga que vivemos no mais democrático dos mundos.

Será que é possível mudar esse modelo ultrapassado de participação política? Sim, já existem respostas para mudanças que possam oxigenar os sistemas políticos vigentes há mais de duzentos anos, com inúmeros experimentos sendo realizados em unidades federadas do Canadá e em alguns países da Europa.
 Vamos citar apenas cinco dos mais importantes dos referidos experimentos, realizados em nível nacional, dois deles no Canadá, e mais três respectivamente na Holanda, na Islândia e na Irlanda. 
Naquela que se pode considerar uma primeira fase, realizada entre os anos de 2004 e 2009, arquitetou-se fóruns de cidadãos nas províncias canadenses da Columbia Britânica e de Ontário, e um terceiro fórum teve lugar na Holanda, incentivado pela experiência canadense.
A segunda fase de experimentos de mudança na participação política teve início em 2010, e ainda está em pleno andamento, na Islândia e na Irlanda.
Assim, em 2004, a província canadense da Columbia Britânica deu início a uma corajosa e renovadora tentativa de democracia deliberativa, nunca antes realizada em qualquer outro espaço geográfico mundial dos tempos modernos: responsabilizar 160 cidadãos pela reforma da lei eleitoral nacional, que ainda se fundamentava no princípio britânico da maioria simples, em que o vencedor leva tudo, em contraste com o sistema da proporcionalidade adotado em tantos outros países. O grupo, escolhido aleatoriamente, foi responsabilizado pelo encaminhamento de uma proposta de reforma do sistema eleitoral canadense e trabalhou, regularmente, durante um ano inteiro, discutindo um tema que os partidos políticos, em qualquer espaço geográfico, encontram muita dificuldade em mudar, porque sempre descobrem desvantagens que podem prejudica-los, no caso da adoção de novas regras.
Em Ontário, se acrescentaram novidades ao processo de formação do grupo: foram selecionados, dentre inúmeros candidatos, por sorteio, 103 cidadãos, sendo 52 mulheres e 51 homens, respeitando-se a pirâmide etária, e pelo menos um deles deveria ser nascido no Canadá, e apenas aquele que fosse indicado presidente do grupo tinha que ser indicado pelos organizadores do evento. Dos candidatos escolhidos por sorteio, setenta-e-sete tinham nascido no Canadá, e os restantes vinte-e-sete eram cidadãos nascidos em outros países.
O grupo de Ontário era formado por cuidadores de crianças, contadores, operários, professores, servidores públicos, empresários, programadores de computação, estudantes e profissionais da saúde, e vale ressaltar que tiveram a orientação de especialistas técnicos para se familiarizarem com textos sobre o tema, no decorrer dos doze meses de duração do projeto e, ao final dos trabalhos, conseguiu apresentar uma proposta de reforma do sistema eleitoral canadense.
Na Holanda, a iniciativa de formar um grupo de cidadãos, convocados aleatoriamente, partiu de um partido político que há muitos anos pedia a reforma das regras do sistema eleitoral e que, finalmente, conseguiu, aproveitando-se da experiência canadense, convencer os demais partidos políticos, da coalizão que faziam parte, a realizarem um Fórum de Cidadãos para pensar o sistema eleitoral canadense a partir do ponto de vista da cidadania. Em 2006, o partido político que teve a iniciativa de lançar o projeto não conseguiu eleger representantes, e todo o trabalho, mesmo tendo sido iniciado e apresentado relatórios, foi abandonado, por decisão do gabinete do Primeiro Ministro Jan Peter Balkenende, apesar do gasto de mais de cinco milhões de euros necessários para bancar a experiência, além de não autorizar a convocação de um referendo que registraria a opinião da cidadania com direito de voto.

Nos três casos, o recrutamento dos cidadãos para trabalhar nos projetos seguiram as seguintes etapas: 1) uma grande amostragem de cidadãos foi escolhida do censo eleitoral por sorteio, e convidados pelo correio; 2) esta primeira fase foi seguida por um período de inscrições voluntárias de pessoas interessadas em participar do projeto; 3) na última fase do processo de seleção, todos os inscritos passaram por um sorteio que selecionava grupos de candidatos segundo uma distribuição balanceada de idades, sexo, etnia e outras variáveis, completando um circuito que envolvia sorteio, seleção voluntária e sorteio mais uma vez.
Finalmente, as propostas de reforma do sistema eleitoral no Canadá, apresentados pelos cidadãos da Columbia Britânica e de Ontário, foram submetidas a um referendo, o que lhes garantiria a necessária legitimidade.  Na Columbia Britânica, 57,7% dos eleitores votaram a favor da mudança proposta pelo fórum de democracia direta, mas eram necessários 60% da totalidade dos votos válidos para sua aprovação. Em Ontário, apenas 36,9 dos votantes se pronunciaram a favor das mudanças propostas.
Vários motivos são relacionados pelos defensores de fórmulas de democracia direta para explicar o fracasso das experiências até agora realizadas, no Canadá e na Holanda, vamos apontar apenas três deles, pois o tempo e o espaço de que dispomos são curtos: 1) Os cidadãos que foram convocados para o referendo não foram informados sobre o projeto e sua intenção de renovar a política pela participação direta de grupos de cidadãos discutindo, debatendo e propondo novas leis, que devem ser submetidas à aprovação ou não pelo restante dos eleitores; 2) Fóruns de Cidadãos, por enquanto, são instituições meramente temporárias, com um mandato temporário, portanto suas decisões ainda não têm o peso das decisões formais das instituições estabelecidas há mais de dois séculos; 3) Os partidos políticos muitas vezes têm interesse em desacreditar esse tipo de experimentos, ou simplesmente os ignora, pois uma reforma do sistema eleitoral vigente poderá tirar-lhes poder.

A propósito, devemos lembrar que referendos revelam a opinião emocionada do eleitor, um voto dado muito mais com a coragem do que com a razão; enquanto grupos de cidadãos reunidos para discutir e debater temas controversos, em processos planejados de democracia deliberativa, trazem à luz opinião pública iluminada por decisões técnicas, formuladas sob o amparo de conhecimento aprofundado sobre o assunto levado às discussões e debates.

 De qualquer modo, os resultados finais dos experimentos canadenses serviram de exemplo fecundo para os projetos de democracia direta que foram realizados na Islândia e na Irlanda, a partir de 2010, projetos responsáveis pela elaboração de corajosas propostas de mudanças nas constituições de seus países: no primeiro dos países citados, uma revisão de toda a Constituição vigente e, no segundo, de apenas oito artigos constitucionais.
Deve ser ressaltado que a decisão de entregar aos cidadãos a responsabilidade de redigir uma constituição por inteiro, no caso da Islândia, e de alguns artigos, no caso da Irlanda, deveu-se, em grande parte, à crise financeira mundial de 2008, que levou o primeiro destes países à falência e o segundo, a uma profunda recessão econômica, consequências que levaram seus governantes e representantes políticos a uma absoluta desmoralização perante o eleitorado, além de demonstrar a falência do modelo republicano-democrático dominante.

Nesses dois países, os governantes entenderam que alguma coisa diferente, em matéria de inovação democrática, tinha que ser levada a cabo, tanto para enfrentar os descalabros das finanças públicas e das economias, quanto para ganhar de volta a confiança do cidadão eleitor.
Entre nós, brasileiros, na presença de uma violenta crise política, como a falência das finanças públicas, a primeira e única lembrança dos governantes é o aumento de impostos, taxas e contribuições obrigatórias que oneram o cidadão comum assalariado, como no caso recente do Rio de Janeiro, em que o Governador “ Grande”, o Abominável Incompetente, quis instituir o aumento da cobrança previdenciária de 11 para 30%, que somados aos 30% de imposto de renda já cobrados pelo Governo Federal, levaria toda a cidadania assalariada à falência absoluta.

 Mas voltemos à Islândia e à Irlanda, com seus republicanos projetos de democracia direta.

Para começar, a Islândia não se prendeu à formula de escolha de 160 cidadãos por sorteio, e adotou uma seleção por eleição, dentre 522 candidatos, dos quais apenas 25 seriam escolhidos por voto secreto depositados nas urnas pelo restante da população convocada, mas os partidos políticos conseguiram anular e impedir esta votação, e o parlamento foi encarregado de selecionar o grupo, defendendo o princípio de que um fórum constitucional deve ser escolhido por eleição. Era claro o desejo de impedir as atividades desse grupo que, argumentava-se, não tinha legitimidade entre os cidadãos nem entre os políticos.

Este impasse foi resolvido pela convocação de milhares de cidadãos que discutiram princípios e valores da nova constituição com antecedência, ao mesmo tempo em que um grupo de sete parlamentares elaborou um documento preliminar, com 700 páginas, contendo conselhos constitucionais. Em tempo: estes dois movimentos pretendiam livrar o resultado futuro de quaisquer tipos de críticas.

Para dar a maior transparência ao projeto, que reunia informações as mais diversas, os organizadores desta original constituinte postavam, toda semana, nas redes eletrônicas, as primeiras versões das cláusulas constitucionais, e recebia as contrapropostas e/ou alterações da comunidade via Facebook, Twiter e outras mídias, num total de mais de quatro mil colaborações, o que contribuía para o enriquecimento do novo texto constitucional. A imprensa descreveu o trabalho como a primeira constituição produzida por uma multidão de constituintes, e no prazo de apenas quatro meses, e apontou a amplitude do processo de consultas e a transparência do processo como as chaves do sucesso da instigante empreitada de democracia direta.   
A nova Constituição foi apresentada aos cidadãos da Islândia em um referendo, no dia 20 de outubro de 2012, e foi aprovada por dois terços do eleitorado.
Apenas como curiosidade, permitam-nos apontar a diversidade profissional das 25 pessoas escolhidas para discutir, debater e elaborar o novo texto constitucional islandês: sete delas ocupavam posições de liderança (em universidades, museus e sindicatos), cinco eram professores ou conferencistas, dois advogados, apenas um era representante religioso e outro fazendeiro, os outros nove eram cidadãos comuns.

Na Irlanda, a Convenção sobre a Constituição começou a trabalhar em janeiro de 2013 e também tirou lições dos experimentos democráticos que a antecederam.
 Os organizadores irlandeses do evento decidiram envolver representantes políticos no experimento de democracia direta desde seu início, ao contrário do que aconteceu na Islândia, mas não abriram mão do processo de seleção dos cidadãos por sorteio, e esta decisão teve o objetivo de acelerar a implantação das decisões tomadas pelo grupo, formado por sessenta-e-seis cidadãos representantes das duas Irlandas, e trinta-e-três políticos, além de reduzir o medo dos parlamentares da participação cidadã e prevenir as reações de desprezo dos partidos políticos à iniciativa inovadora, mesmo correndo o risco do poder de influência dos políticos, graças à prática adquirida no trabalho parlamentar, sobre os demais participantes.

Em resumo, que o nosso espaço é curto e o assunto pode tornar-se cansativo, as recomendações do grupo sobre mudanças em oito artigos constitucionais passaram, em primeiro lugar, pelas duas câmaras do Parlamento Irlandês, depois pelo governo em exercício e, finalmente, por um referendo.

Uma maioria de 79% dos participantes da Convenção sobre a Constituição Irlandesa recomendou, por exemplo, que o casamento entre homossexuais fosse admitido por lei, e no dia 22 de maio de 2015, em um referendo, 62% da população irlandesa aprovou este novo mandamento constitucional, sendo esta a primeira vez no mundo moderno em que uma mudança constitucional foi efetivada por discussões entre cidadãos escolhidos por sorteio, mesmo contando com a colaboração de parlamentares eleitos por sufrágio universal, demonstrando-se, assim, que era possível o retorno das práticas da democracia grega bi-representativa e sua adaptação ao cenário político dos dias de hoje.

Enfim, para concluir este pequeno ensaio sobre a necessidade de reformulação do modo de fazer política na democracia republicana moderna, só podemos afirmar que novos experimentos de democracia direta estão sendo realizados em países do mundo ocidental, e sempre procurando fugir do modelo criado por James Madison e seus contemporâneos há mais de duzentos anos, que, está comprovado, impede a participação cidadã de forma mais direta do que se vem permitindo até agora.

Assim, um questionamento deve ser feito, em especial neste ruidoso instante da política brasileira, assustada com o andamento da Operação Lava Jato que faz dobrar os sinos anunciadores de novos tempos políticos: até quando adiaremos o funcionamento de uma Terceira Casa Congressual temporária, composta por cidadãos convocados aleatoriamente, sem qualquer participação dos partidos políticos, para discutir e debater os grandes temas que afligem as populações nacionais, com o objetivo explícito de complementar, democraticamente, o trabalho republicano dos poderes Executivo e Legislativo em nosso país?

 Por fim, em conclusão, nesta última hora, vale parodiar o escritor norte-americano Ernest Hemingway que, por sua vez, citou o poeta inglês John Donne: “Senhores políticos brasileiros, não perguntem por quem os sinos dobram, porque eles dobram por vocês”.


domingo, 6 de novembro de 2016

Eleições, um paradigma ultrapassado?

Para muito além da derrota do PT nas eleições municipais de 2016, que evidenciou o acerto do impeachment da presidente Dilma Vana Rousseff e retirou-lhe trinta e dois dos cinquenta e quatro milhões de votos que a elegeram em 2014, incluindo-se até o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva que alegou a condição de septuagenário para não registrar seu voto neste pleito e ela própria, que declarou também não ter votado por não haver um candidato de sua preferência, emergiu das urnas a maior abstenção já vista em participações eleitorais brasileiras, cuja principal marca é a obrigatoriedade de comparecimento da cidadania para votar, acompanhada da ameaça de sofrer punições variadas, começando pelo pagamento de multas, que podem tornar mais difícil o seu cotidiano no país de bruzundangas burocráticas.

Somados os números de abstenções, votos brancos e votos nulos, o resultado superou o número de votos que elegeram os prefeitos, primeiro de São Paulo, depois do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, ao final das apurações nestas capitais, no primeiro e no segundo turnos das eleições, comprovando-se, assim, o descrédito dos políticos e o desencanto do eleitorado com o desempenho descomprometido dos partidos políticos e seus dirigentes para com as verdadeiras demandas de necessidades afligindo as populações brasileiras.

No universo das abstenções de votos em branco e votos nulos destaca-se o Rio de Janeiro, com um volume de mais de quarenta por cento de cidadãos eleitores que rejeitam e desdenham da fórmula secular do sistema eleitoral como via democrática na escolha de seus representantes para comporem os Poderes Executivo e Legislativo, instituições expostas nos jornais, revistas semanais e televisões como antros de indivíduos corruptos, venais e defensores de legislação que os perdoa, seguidamente, do cometimento comprovado de ilicitudes destinadas a esvaziarem os cofres públicos em seu próprio proveito.

Os políticos, em expressiva maioria, parecem não enxergar o óbvio: vivenciamos uma Síndrome da Fadiga Eleitoral, que o crescente número de partidos políticos jamais resolverá, pois esses senhores e essas instituições se apropriam dos poderes Legislativo e Executivo e apenas se preocupam em tentar salvar um modelo esgotado, e nem mesmo a luta incessante e cotidiana do Poder Judiciário será capaz de reformar ou devolver aos trilhos do caminho responsável e justo, como esperam os cidadãos.

Um parênteses:  o que denominamos de Síndrome da Fadiga Eleitoral afeta o mundo inteiro, e é acompanhada de reações enraivecidas dos cidadãos em todo o espaço geográfico dos cinco continentes, basta prestar atenção no Brexit inglês, que apesar da importância da economia do Continente para as finanças inglesas abandonou a União Europeia, balizou o caminho de um Reino Unido desintegrado e cada vez mais dividido entre cidadãos empobrecidos e banqueiros muito ricos, e, por ironia, como diria Shakespeare: “Quem mais sofrerá,  senão a maioria que votou pela saída?”; no surgimento da candidatura vitoriosa do xenófobo Donald Trump nos EUA, mesmo que ele tenha confessado ser um hábil sonegador de impostos; nos dez meses sem governo, graças à indecisão do parlamento espanhol para eleger Mariano Rajoy primeiro-ministro; no fracasso  de François Holande em buscar uma solução para abrigar a revoada, quem imaginaria, dos antigos povos colonizados sobre o território francês; no inaceitável drama venezuelano do desrespeito à Constituição pelo presidente Nicolás  Maduro, que se recusa em aceitar a convocação de um plebiscito revogatório inventado por Hugo Chaves e inserido no texto constitucional como pétrea cláusula democrática!; e, no caso brasileiro, além da enxurrada de abstenções de hoje, a enxurrada de cidadãos que ocuparam as ruas em 2013 para protestar contra as decisões políticas que lhes afetam o dia-a-dia sofrido, escudando-se no aumento de 20 centavos nas tarifas dos transportes coletivos, na verdade descontente com a  incapacidade política para encontrar soluções administrativas democráticas e enquadradas nos limites das finanças públicas, e tudo foi feito em meio ao anarquismo dos black blocs que acompanhavam a movimentação das ruas e aproveitavam, como sempre, para vandalizar vitrines bancárias, carros estacionados e latas de lixo, o que também não deixa de ser uma forma de protesto.

Em 1762, Jean-Jacques Rousseau, na conhecida obra O Contrato Social, já denunciava: “O povo da Inglaterra engana a si mesmo quando imagina que é livre; de fato, ele é livre somente durante o período para a eleição dos Membros do Parlamento, porque, logo em seguida, tão logo um novo Parlamento é eleito, o povo é novamente acorrentado, e se transforma em nada”.

Em seguida, para comprovar o acerto da análise de Rousseau, surgiu Edmund Burke, filósofo e político britânico, famoso entre os estudiosos de Ciência Política, que se tornou célebre, entre tantos outros feitos pelo ensaio Reflexões sobre a Revolução Francesa, de 1790, por argumentar que, depois de eleito, os eleitores não podiam moldar-lhe a consciência política para o enfrentamento dos debates parlamentares, ou seja, tão logo empossado como representante dos cidadãos eleitores, ele exigia o devido respeito democrático à sua condição de aristocrata político que tomava decisões políticas de acordo com a posição que ocupava na hierarquia das classes sociais.

Aliás, da obra acima referida, podemos citar o pensamento aristocrático de Edmund Burke, traduzido do original em língua inglesa: “A ocupação de um cabeleireiro ou de um operário que produz velas não pode ser motivo de orgulho para ninguém – isto para não nos referirmos a outras profissões mais subservientes. Tais descrições de profissões humanas não devem sofrer discriminação da parte do Estado; mas o Estado sofrerá discriminação se a estes profissionais, individual ou coletivamente, for permitido legislar... Tudo deve ser aberto, mas não para qualquer indivíduo. Nenhuma rotatividade; nenhuma indicação por sorteio: nenhuma espécie de eleição que funcione de acordo com o espírito de sorteio ou de rotatividade pode ser boa em um governo que tem que entender de assuntos múltiplos e tão variados”. Neste instante da história da política moderna se deu início ao descarte do modelo Ateniense bi-representativo de participação política, de se adotar a eleição e o sorteio para o preenchimento de cargos e funções públicas.

 Ora, a raiva dos cidadãos de hoje comprova o argumento rousseauniano de outrora: depois das eleições, os eleitores passam a nada significar para os eleitos, que, na sua imensa maioria, tão logo empossados nas novas funções políticas, tratam de cuidar e de defender seus próprios interesses pessoais, como no recente exemplo da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, cujos integrantes estão tentando aprovar o direito de se aposentarem após três mandatos, recebendo vencimentos no total de R$ 15.000,00, e somarem a esta mais uma aposentadoria de R$ 12.000,00, no caso de desempenharem função pública por uma única vez, por mais uma legislatura, por exemplo, como secretários municipais, o que, para alguns deles, não seria muito difícil no contexto de negociações políticas com os ocupantes do cargo de prefeito. No caso de Brasília, este tipo de negociação espúria também acontece, pois o Tribunal de Contas local está infestado de ex-sindicalistas defensores de uma política sindical de resultados, ou melhor, de vantagens para a própria categoria; de ex-políticos envolvidos em falcatruas e de ex-administradores regionais todos buscando usufruir dos altos salários e aposentadorias oferecidos pelos tribunais de contas estatais, um porto seguro do qual não dispõem os eleitores que os fizeram seus representantes. E no Congresso Nacional, parlamentares apavorados com possíveis desdobramentos da redentora Operação Lava Jato, fazem circular, sem que se possa identificar o pai, ou a mãe, uma proposta de perdão dos crimes de caixa-dois, desde que tenham sido cometidos antes da vigência da nova lei sobre crimes de corrupção política, prestes a ser aprovada por imposição da sociedade.

Um pouco antes de Rousseau, com a adoção do sistema dos três poderes pela Inglaterra, Charles de Secondat, Barão de Montesquieu, deixou como legado triunfal O Espírito das Leis, de 1748, ensaio que consagra e registra a vitória do modelo de separação dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, associado a um sistema eleitoral ungido como democrático porque fundado no conceito do sufrágio universal, em poucas palavras, no direito de cada cidadão representar um voto legítimo e intransferível. Bania-se, assim, o justíssimo modelo bi-representativo das cidades-Estado da antiga Grécia, pelo qual cargos e funções públicas se efetivavam por eleição e também por sorteio.

 Eleições por sorteio? Isso deve ser coisa de mentes desocupadas ou enlouquecidas que querem destruir o democrático sistema eleitoral vigente há pelo menos dois séculos. Sim, como denunciou Jean-Jacques Rousseau, há dois séculos e meio, hoje um sistema eleitoral cada vez mais influenciado pelos modernos meios de comunicação de massas que se rende prazerosamente ao poder do dinheiro que flui aos borbotões dos bolsos e dos Departamentos de Corrupção dos conglomerados empresariais da Dona Zelite sócia de Luis Inácio Lula da Silva, uma elite que, por sua vez, se associa aos políticos para o assalto aos cofres públicos em nome da inclusão social, uma galinha-dos-ovos-de-ouro que não se pretende matar, pelo menos no Brasil e nos demais países do cinturão bolivariano que respira o ar enganador da democracia ungida pelas urnas, que se esgota no próprio instante da deposição do voto na urna ou do registro eletrônico da vontade popular.
Mas, como era mesmo que funcionava o sistema bi-representativo das calendas gregas, misturando eleições e sorteio para a ocupação de cargos públicos?

No decorrer do quinto e do quarto séculos antes de Cristo, na antiga cidade grega de Atenas, de 30.00 a 60.000 cidadãos atenienses disputavam, na ágora, cargos e funções no Conselho dos 500, na Corte do Povo, nas Assembleias do Povo e nas Magistraturas, os mais importantes órgãos de governo, e validavam ocupações públicas preenchidas por meio de sorteio e de eleições.

Vale a pena descobrir, por exemplo, que o Conselho dos 500 era formado por quinhentos cidadãos escolhidos por sorteio, e esse órgão constituía o corpo central de governo da democracia ateniense, sendo responsabilizado pela criação da legislação, pela organização da agenda das Assembleias do Povo, pelo controle das Magistraturas, pelos negócios estrangeiros ou diplomacia, e, finalmente, pela fiscalização das finanças e das políticas públicas. E tudo isso sem contar com a parafernália que a telemática põe à disposição dos senhores governantes do mundo moderno.

Nas Assembleias do Povo, abertas a todo cidadão que delas quisesse participar, desde que não fosse criança, escravo, meteco ou mulher, formadas por mais ou menos 6.000 indivíduos, eram votadas as leis propostas pelo Conselho dos 500, observada a sua legalidade, e selecionados os servidores públicos de alto nível que se inscreviam para serem escolhidos por eleição majoritária para cargos públicos.

A Corte do Povo era também composta por mais ou menos 6.000 cidadãos, e escolhia seus membros por sorteio, todas as manhãs, selecionando dentre aqueles cidadãos presentes e inscritos por iniciativa própria quem responderia pelos julgamentos do dia, transformando-os em magistrados que se responsabilizavam pelo pronunciamento de sentenças, mas antes se certificando da legalidade das decisões, de acordo com as leis aprovadas pelas Assembleias do Povo, e sua imediata implantação de acordo com cada caso. Vale observar que se era juiz apenas por um dia.
As Magistraturas permanentes eram formadas por 700 magistrados, dos quais 600 eram escolhidos por sorteio entre candidaturas que se apresentavam por sua própria iniciativa, e as cem vagas remanescentes eram preenchidas pela via eleitoral.

Os cidadãos eleitos para o Conselho dos 500 e aqueles que se tornavam Magistrados permaneciam no cargo por um ano, e recebiam pagamento pelo serviço prestado. O tempo máximo de permanência no Conselho dos 500 era de dois períodos não consecutivos, e o modelo de participação democrática permitiu que entre 50 a 70% dos cidadãos com idade acima de trinta anos se sentasse pelo menos uma vez no Conselho. Modelo mais democrático nunca mais foi visto, ou melhor, foi reproduzido, com alterações circunstanciais apenas em Veneza (1268 -1797) e em Florença (1328 – 1530), na Itália, e em Aragão (1350-1715), na Espanha.

A fórmula democrática da antiga Atenas, de dois séculos e meio passados, deixa-nos entender que o Conselho dos 500 controlava o Poder Executivo, enquanto a Corte do Povo preenchia o papel de Poder Judiciário. No entanto, nem tudo eram flores na Grécia berço da democracia: não podemos esquecer o julgamento de Sócrates, símbolo maior da miserável condição humana que está sempre sujeita a imperdoáveis conflitos ideológicos, nesse caso, maculando o modelo democrático ateniense.
 A experiência da antiga Grécia foi transformada pela burguesia revolucionária do final do século XVIII, graças à ação dos filósofos e rebeldes americanos e franceses, que não queriam admitir a participação popular nas esferas governamentais, uma tradição que permanece até os dias de hoje: James Madison, considerado o pai intelectual da Constituição americana, argumentava estar convencido, como se descobre no seu ensaio número 10 de O Federalista, que as democracias que antecederam o movimento revolucionário contra a Inglaterra tinham sido “espetáculos de turbulência e desentendimento”, e, em geral, “têm vida curta e se mostram violentas pelo número de mortes causadas”.

Argumentos contra a participação popular, extremamente incentivada no nascedouro do que os gregos chamavam de democracia e, a partir dessa ideia, construíram e puseram em funcionamento o modelo ateniense de governo, além de servirem como pano de fundo para obras clássicas como A República, de Platão e A Política, de Aristóteles, em  outras palavras, as falas de Edmundo Burke e James Madison, entre tantas outras, criaram o contexto para que, dessa vez, fosse fortalecido e escolhido o termo “república” em substituição ao vocábulo “democracia”, e dentre as duas formas básicas de escolha dos representantes daqueles que se multiplicavam em velocidade progressiva, em grande parte graças a uma mais adequada organização da sociedade, deu-se preferência ao sistema de eleições em detrimento do seu par inseparável, o sistema de sorteios.

E assim as lideranças revolucionárias, nos Estados Unidos e na França, contando com o apoio da tipologia da separação tripartite dos poderes, criada pelos ingleses e anunciada ao mundo por Montesquieu, adotaram a república democrática de fato e de direito, solução política que tomou conta da maior parte dos espaços geográficos nacionais no mundo inteiro, uma aristocrática escolha de quem empalma o poder, seja ele um ungido da direita ou um revolucionário da esquerda política, e que serve até para justificar o bolivarianismo do ex-presidente Hugo Chávez, o “socialismo do século XXI” que se encontra acossado nas ruas de uma Venezuela à beira de uma guerra civil.

John Adams, no ano da independência norte-americana, 1776, escreveu Thoughts on Government (Reflexões sobre o Governo), ensaio em que afirma que “a América é muito grande e muito populosa para ser governada diretamente, e este fato impede que se adote simplesmente o modelo de Atenas ou o de Florença, porque eles não funcionariam nessa realidade”, uma análise da qual não se pode discordar. Adams, que se elegeu presidente dos Estados Unidos, nessa mesma época, argumentou que o passo mais importante a ser dado, de acordo com a realidade norte-americana, seria “delegar o poder da maioria para uns poucos dos cidadãos mais sábios e melhores”, pois estes representantes “pensariam, sentir-se-iam, raciocinariam e agiriam como o resto da sociedade”, em resumo, constituiriam “uma miniatura, um retrato exato da maioria do povo”. Hoje sabemos que, em qualquer espaço geográfico desse vasto mundo, um banqueiro não entende as necessidades e as reclamações do povo como pode fazê-lo a esposa de um pobre padeiro, por exemplo. Um banqueiro é um especialista em dinheiros, em fabricar lucros e cobrar juros, cada vez mais altos, a esposa do padeiro entende da luta pela sobrevivência cotidiana, cada vez mais difícil.

Na sequência desta toada, em fevereiro de 1788, no Federalista número 57, James Madison escreveu: “O objetivo de qualquer Constituição é - ou deve ser – antes de tudo escolher como dirigentes as pessoas mais capacitadas para discernir e mais eficientes para assegurar o bem-estar da sociedade; depois, tomar as mais seguras precauções no sentido de conservá-las eficientes enquanto desfrutarem a confiança pública. O processo eletivo para escolher dirigentes é a norma característica do governo republicano. Os meios com que conta esta forma de governo para evitar sua degeneração são numerosos e variados. O mais eficaz consiste na limitação do período dos mandatos, visando a manter uma adequada responsabilidade perante o povo”.

Ora, a limitação dos mandatos eletivos, sugerida por James Madison, nunca foi observada, pelo contrário, incentiva-se, até hoje, que os políticos construam uma carreira profissional elegendo-se e reelegendo-se até o fim de suas vidas, e mesmo atraindo para o mundo da política seus filhos, suas esposas, suas amantes e seus amigos, enfim, parentes e aderentes, fortalecendo-se, assim, o costume de gerações familiais dominando a política por tempos duradouros, nas esferas municipais, nas estaduais e na federal, permitindo-se e incentivando-se a criação de nichos de mercado político, partidários e/ou familiais, como se pode observar tanto nos Estados Unidos, dos Bush e dos Clinton, quanto no Brasil, dos Sarney, dos Neves e dos Magalhães.

E assim, compreendemos que Adams e Madison se entendiam perfeitamente, mas também compreendemos que, para a mente dos gregos dos tempos de Sócrates e Aristóteles, devia haver a mínima distinção possível entre os governantes e os governados, enquanto para o grande líder e pensador James Madison tal distinção era obrigatória.

Além dos pensadores norte-americanos, o francês Alexis de Tocqueville observou, na prática do dia-a-dia, a democracia republicana imaginada pelos pais fundadores, um novo país em funcionamento, e escreveu uma obra fundamental para se tentar entendê-la: A Democracia na América, um livro que tem sua primeira parte publicada em 1835 e a segunda apenas em 1840, tendo seu autor permanecido nos Estados Unidos de maio de 1831 a fevereiro de 1832. É impressionante a capacidade de Tocqueville para captar os detalhes da movimentação dos norte-americanos e seu esforço para construir uma nova sociedade, livre do comando da aristocracia que acompanhava a realeza europeia. Além de observador perspicaz da sociedade que se construía na América, Tocqueville também se debruçou sobre os escritos dos grandes líderes norte-americanos, e de Thomas Jefferson, ele cita: “O poder executivo, em nosso governo, não é o único, não é talvez o principal objeto de minha preocupação. A tirania dos legisladores realmente é e será durante muitos anos ainda, o perigo mais temível. A do poder executivo virá por sua vez, mas num período mais remoto.”

Quanto à participação popular, Tocqueville relata como política e religião se misturavam na construção da nova sociedade: “Vivi temporariamente numa das maiores cidades da União, tendo sido convidado a assistir a uma reunião política cuja finalidade era prestar socorro aos poloneses e fazer chegar a eles armas e dinheiro. Assim, encontrei três mil pessoas reunidas numa sala enorme, que fora preparada para recebê-las. Logo depois, um sacerdote, vestindo os hábitos religiosos, adiantou-se à borda do estrado destinado aos oradores. Os assistentes, depois de terem-se descoberto, puseram-se de pé em silêncio, e ele falou nestes termos: Deus Todo-Poderoso! Deus dos exércitos! Vós que destes forças e guiastes o braço de nossos pais quando defendiam os direitos sagrados de sua independência nacional...”.

Porém, o que Tocqueville presenciou em 1831 não era mais a participação popular como na Grécia antiga de antes de Cristo, era o abandono das idealizações primeiras do que significava democracia, fazendo-a repousar no princípio da representação que, por muito tempo, cerca de dois séculos, faria dos Estados Unidos o mais poderoso país do mundo, um republicanismo que o tempo se encarregou de transformar em paradigma eleitoral que se mostra esgotado, sustentado em grande parte em marqueteiros, os novos ilusionistas de multidões, capazes, com sua arte, de eleger um poste para presidente da República.

Aristocracia, em grego, tem o significado de “governo conduzido pelos melhores”, que o mundo moderno mudou, em especial no caso brasileiro, para “governo dos mais espertos e mais cínicos”, de “governo dos caras- de- pau, dos mentirosos”, dos que “conduzem o desvio dos recursos públicos em proveito próprio”, enfim, “dos ladravazes que assaltam as finanças públicas”, sem dó nem piedade, e que se danem os pobres e os eleitores da República Democrática, de fato e de direito.

A propósito, os norte-americanos de hoje se referem a Washington, a capital dos Estados Unidos, como “o brejo, a capital que abriga uma elite voraz, corrupta e indiferente à sorte dos humildes”, uma apreciação que não difere do que pensam os brasileiros de sua capital, Brasília, muito embora os brasilienses não tenham muita culpa por este fato, pois elegem apenas onze parlamentares, entre deputados e senadores, dos quinhentos-e-noventa-e-um políticos aboletados nas bancadas do Congresso Nacional, cuja imensa maioria, é preciso ressaltar, foi levada ao admirável espaço urbano socialista, sonhado por Oscar Niemeyer, pelo voto do restante do povo brasileiro; logo, não procedem as críticas nacionais contra os habitantes da capital. Aliás, nas últimas eleições locais, 70% do eleitorado brasiliense rejeitou o incompetente modo petista de governar, que nos legou o mais caro estádio de futebol da Copa do Mundo de 2014.

 Pedimos espaço para mais um parênteses: Donald Trump prometeu drenar o pântano norte-americano, com certeza não vai conseguir cumprir mais esta promessa eleitoral. Será que a Operação Lava Jato conseguirá drenar o pântano brasiliense incrustado na Praça dos Três Poderes e o brejo local, na Praça do Buriti?

Com a adoção do republicanismo, surgem, a partir de 1850, os partidos políticos, a ferramenta ideal para se alcançar o poder através do voto, e no referido início eram temidos pela aristocracia ocupante dos palácios símbolos do governo, basta lembrar a fala de Odilon Barrot, um senador francês, registrada por Karl Marx em passagem do O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “A legalidade nos mata”, porque a luta na época era pelo direito de votar estendido a todas as classes sociais.

Mas, para que servem os partidos políticos, hoje? A Lei de Ferro das Oligarquias, de Robert Michels, o sociólogo alemão, mostra que servem para abrigar e enriquecer seus “donos”, criaturas que se apresentam como Adolf Hitler, com o seu Partido Nacional Socialista, que fez-se milionário com a venda do seu livro Mein Kampf, ou como Luís Inácio Lula da Silva, com o seu Partido dos Trabalhadores, também milionário com a venda de suas empolgantes palestras, políticos populistas que encantam as multidões carentes de rumo ou de comida, e falando de pureza racial ou de inclusão social permanecem por longas temporadas com as rédeas do poder nas mãos, para cujo exercício democrático não estão preparados. Para tais criaturas, vale qualquer desculpa para a tomada do poder político, seja a ocupação do espaço vital defendida pelo líder alemão, ou a necessária Bolsa Família, copiada pelo líder brasileiro.

Em resumo, os partidos políticos servem para qualquer coisa, para tudo ou para nada. Por exemplo, para defenderem um naco do fundo partidário ou ideias como a do orçamento participativo, que de participação popular e democrática tem muito pouco, servindo muito mais como propaganda enganosa de uma forma de democracia direta: põe-se o povo para discutir a alocação de 5% dos recursos orçamentários à disposição dos governantes e considera-se que tal ilusionismo é a mais pura democracia.

Enfim, cansados estamos todos, os eleitores iludidos por um republicanismo que não permite a participação direta dos cidadãos, e que, para ser mudado, não pode simplesmente copiar a Atenas grega de quatro mil anos atrás, mas que está reagindo, na Europa e nos Estados Unidos, e buscando formas de democracia direta e indireta que os políticos encastelados nos poderes Executivo e Legislativo repudiam, tanto lá como em nossas plagas, por saberem que a descoberta, invenção e adoção de práticas que lhes coíbam as atitudes ilícitas não permitirão a continuidade descarada do assalto indiscriminado às finanças do Estado, as administrações viciadas em ultrapassadas visões ideológicas que enganam não apenas as multidões de despossuídos, mas, em especial, a grande massa de milhares de militontos, que é assim que Frei Betto os apelidou em A Mosca Azul, que os seguem com fanatismo absoluto.

Para concluir este ensaio sobre o ultrapassado sistema único eleitoral, lembramos que é chegada a hora de resgatarmos a possibilidade de adoção de um sistema bi-representativo, em que o sorteio de cidadãos livres da submissão de vínculos partidários se torne uma realidade, cidadãos que se apresentem voluntariamente para o trabalho político, e, se em tempo integral, um trabalho até remunerado, uma atividade política temporária, em paralelo às casas de representantes eleitos.


Que esta não seja uma ideia ignorada, nem ridicularizada, porque o tempo, senhor da razão, mostrará que, com certeza, é uma sábia ideia em tempos tão desmoralizados pela constante malversação dos dinheiros públicos e pela má administração das organizações do Estado.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

A metamorfose ambulante, seu incrível exército Brancaleone e a ocupação do Palácio do Planalto

Será que o mito Lula chegou ao fim, ou permanecerá, como Peron na Argentina, depois de morto, governando os vivos? À presidente Dilma Roussef, pelo menos, ele ainda governa, e com os mesmos comandos que levaram o país ao desastroso cenário econômico em que se encontra.
É muito difícil responder a esse questionamento, mas é possível lembrar alguns passos dessa metamorfose ambulante (apelido que ele mesmo, Lula, se pespegou), nos 36 anos de jornada do partido político criado pela aliança intelectual-sindicalista-religiosa para dar-lhe sustentação e vida perante a maltratada sociedade brasileira.

Antes das eleições presidenciais de 2002, Lula e o PT endereçaram uma carta-manifesto ao país comprometendo-se a não promoverem a revolução socialista que colocaria o capitalismo nacional de ponta-cabeça, o que agradou e convenceu os empresários, em especial aos banqueiros.

Eleito, Lula, como bom negociador e líder populista, deu inicio à sua coletânea de frases de efeito para atender a Deus e ao Diabo na terra do sol, afirmando, com certeza encantando facções do PT mais à esquerda, que o governante que o antecedera deixara-lhe “uma herança maldita”, ou seja, condenando e negando um legado de finanças públicas em ordem, uma moeda forte perante as comunidades nacional e internacional, uma inflação sob controle e uma economia pronta para seguir se desenvolvendo.

Naquele tempo Lula tinha o apoio popular, classe média inclusive, para propor ao Poder Legislativo propostas de mudanças que eram consideradas inadiáveis para modernizar as estruturas trabalhista, previdenciária, tributária, do Estado e de governo, eleitoral, partidária, penitenciária, de transporte, educacional, fundiária e tantas outras que, se concretizadas, preparariam o Brasil para melhor enfrentar o tempo globalizado que vivemos.

E o que decidiu a metamorfose ambulante oriunda dos confins esturricados do Nordeste brasileiro aboletado no sindicalismo de resultados do ABC paulista, agora sentado na cadeira imperial da presidência da República? Ora, ao invés de procurar cumprir as promessas de transformação do modelo econômico ultrapassado e das carcomidas estruturas do Estado e das principais instituições de governo, Lula fez de conta que tinha se esquecido do prometido como líder partidário e entregou-se a um delicioso projeto de poder sustentado por mentiras criadas por áulicos e acólitos e transformadas em alegorias coloridas pela telemática da propaganda eleitoral e de governo.

E assim se passaram oito anos, de muita festa e inclusão social, e até Barack Obama acreditou que a metamorfose ambulante “era o cara”, líder de um incrível exército Brancaleone formado, por um lado, pela massa de incluídos que se acreditava, finalmente, “no melhor dos mundos possíveis”, e, por outro lado, pelo entrelaçamento entre banqueiros, amigos do peito com entrada livre a qualquer momento no Palácio do Planalto e pelos dirigentes e tesoureiros partidários que se cevavam nas propinas e pseudo doações das empresas nacionais e internacionais, sócios no maior assalto de todos os tempos às arcas de estatais e do Tesouro Nacional brasileiro, sob as rédeas de iluminados burocratas nomeados pelos dirigentes do Partido dos Trabalhadores e aliados, enquanto Lula passeava seu incrível sucesso político e econômico por outras terras, africanas e americanas.

E chegou a vez da mãe do Brasil, escolha exclusiva da metamorfose ambulante-pai do Brasil, por mais oito anos assentar-se na tal cadeira hiperpresidencialista e dar continuidade ao projeto de poder que acredita ser possível, para manter-se eternamente com as rédeas do poder nas mãos, arrecadar dinheiro e distribui-lo messianicamente aos despossuídos da sociedade, transformando-os em vorazes consumidores, qual gafanhotos que consomem tudo aquilo que não produziram e que jamais irão repor, porque não foram preparados nem educados para tanto.

Em outra de suas reviravoltas, a metamorfose ambulante passou a defender, depois de tê-lo inicialmente relegado ao abandono, seu ex-primeiro-ministro, José Dirceu, “o guerreiro do povo brasileiro”, que faturou cerca de 40 milhões de reais prestando consultorias a grandes empreiteiros e lobistas, mesmo estando condenado no processo do mensalão e aprisionado na penitenciária da Papuda, em Brasília.

O trabalho do ex-ministro José Dirceu como consultor, um ex-presidente do PT, lembra a atuação de Joseph Stalin na ex-URSS no inicio da carreira política: assaltante de bancos, como revelou o historiador Simon Sebag Montefiore (“Stálin, A corte do czar vermelho”, 2003), tudo em nome da revolução social.

Noutra defesa de companheiros de jornada já considerada célebre nos anais da política nacional e perante a opinião pública, a metamorfose ambulante considerou o ex-presidente José Sarney um cidadão diferenciado do cidadão comum brasileiro, merecedor de tratamento especial até pelo Poder Judiciário. Em tempo: o ex-primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmer, foi recentemente condenado a 19 meses de prisão condenado por crimes de recebimento de suborno e obstrução da justiça do país,
Frei Betto, religioso preso e torturado pela ditadura militar instaurada em 1964, fiel seguidor da metamorfose ambulante, que assessorou o Palácio do Planalto durante dois anos do primeiro mandato petista, queixou-se, em reunião “en petit comité” no Palácio da Alvorada, que, ao longo desse tempo, nunca havia conseguido ser recebido pelo chefe da Casa Civil, José Dirceu, por isso mesmo pediu ao presidente que o exonerasse, conforme relatou em sua obra “O Calendário do Poder”.

Enfim, no exercício da oposição a governantes eleitos antes dele, a metamorfose ambulante sempre se apresentou como um duro acusador dos malfeitos praticados contra os cofres públicos, como um ilibado e ético guerreiro do povo brasileiro em luta permanente contra administradores incompetentes ou desonestos.

Hoje, porém, seus fanáticos seguidores, os parlamentares e dirigentes do Partido dos Trabalhadores formam uma ativa frente em defesa de sua honorabilidade e de um fracassado projeto de poder, não admitindo o papel da imprensa livre nem o ativismo judicial contra as criativas formas de corrupção que se apoderaram, comprovadamente, dos recursos financeiros entesourados pelo Estado nacional graças ao suor da cidadania. Formas de corrupção que se abraçam fortemente a dirigentes partidários e empresariais, a burocratas públicos e privados e a parlamentares nacionais, como comprova cada fase da operação Lava Jato.

Aliás, a metamorfose ambulante, no vídeo de aniversário dos 36 anos do Partido dos Trabalhadores, admite: “É certo que cometemos erros, e quem comete erros paga pelos erros que cometeu”; mas o atual presidente do partido afirma, com todas as letras, que o ativismo judicial praticado para punir os delitos cometidos pelos dirigentes, burocratas e parlamentares a serviço da sigla que representa os trabalhadores, em verdade atuam para destruir o Estado Democrático de Direito.

Conscientes do desastre econômico-financeiro a que fomos conduzidos por lideranças da classe política nacional, enroscadas nas graves acusações de ocultação de patrimônio e enriquecimento por lavagem de dinheiro, graças às vultosas contribuições de empresas arroladas na Operação Lava Jato, só nos resta fazer um simples questionamento:


Diante do perverso momento político brasileiro que vivenciamos, será que Lula sobreviverá para candidatar-se e eleger-se, nas eleições para mais um mandato presidencial em 2018, quando, então, poderá continuar sua trajetória de metamorfoses, para, mais uma vez, tentar consolidar, em definitivo, o desmoralizado projeto de poder petista?

Reforma constitucional e democracia direta no Brasil

O mundo político brasileiro atravessa um momento de intensa agonia frente às denúncias de acordos de corrupção que transferem enormes somas de recursos financeiros desviados dos cofres públicos para os bolsos dos representantes e governantes, no poder ou fora dele temporariamente, eleitos por sufrágio universal, e nós, pobres cidadãos assistimos bestializados a todo este imbróglio, como a cidadania nossa avozinha presenciou, também bestializada, o episódio da proclamação da República, em 1889, sem qualquer tipo de participação.

Hoje, continuamos sendo bestializados, porque mecanismos de democracia direta como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, previstos na Constituição, são pouco utilizados com oportunidade e eficiência, pois dependem de o Congresso Nacional os autorizar ou admitir. Vejam-se as dificuldades enfrentadas, recentemente, pelo grupo de cidadãos que conseguiu levar até o fim o projeto conhecido como da ficha limpa.

Há muito tempo, em nosso país, movimentos de corrupção solapam os esforços de governos que se sucedem em tentativas de posicionar o Brasil nos, digamos, caminhos do desenvolvimento sustentável, e nenhum grupo político que se alça ao poder, seja ele de direita ou de esquerda, armado ou desarmado, tem favorecido o uso de mecanismos de democracia direta, mesmo que inseridos no texto constitucional de 1988, por mérito de uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração de uma Constituição apelidada de cidadã.

Podemos deduzir que a alma política brasileira foi forjada e bestializada pelo colonialismo português que não admitia a participação popular nas decisões de governo, afinal os reis nossos avozinhos tinham o respaldo divino para excluir o povo do acesso às tetas públicas.

No entanto, passados quinhentos anos da visão deslumbrada do Monte Pascoal em território baiano, pelos navegadores portugueses, e chegando ao poder um partido político que se dizia de esquerda e do trabalhador, nem assim conseguimos ver implantado um mecanismo destinado a promover verdadeiras ações democráticas diretas, balizando o caminho para o sonho da democracia deliberativa, pois o tão badalado orçamento participativo petista nada significava em termos percentuais na arte de dividir o poder de governar e bem atender às demandas da cidadania.

 Quem, por sorte de ser militante ou servidor público, participou de reuniões do primeiro governo petista em Brasília, à época, para discutir a implantação do orçamento participativo, teve a oportunidade de entender que o povo, mais uma vez bestializado, só poderia discutir a alocação de, no máximo, 15% do orçamento disponível, ou seja, os governantes, como sempre, mesmo em um governo de esquerda, continuariam com o direito supremo de decidir como manejar o dinheiro arrecadado desse mesmo povo que os conduziu ao poder, e o cidadão, bestializado, a tudo assistiu como figurante.

Na sequência das eleições no Distrito Federal, o Partido dos Trabalhadores mais uma vez chegou ao poder, agora liderado pelo médico Agnelo Queiroz, ex-deputado, e dessa vez contando com o respaldo de uma presidência da República petista após dois mandatos exercidos com relativo sucesso. Ao final de mais uma oportunidade de governo, por sua obra e artes políticas, o projeto de reeleição do PT foi rejeitado nas urnas por cerca de 70% do eleitorado brasiliense, na esteira do mais caro estádio de futebol já construído no país, coisa aí da ordem de dois bilhões de reais, enquanto o sistema de saúde pública sofria um brutal sucateamento. Assim, foi enterrada de vez a proposta de orçamento participativo no Distrito Federal, um possível mecanismo de democracia direta que, se conduzido honestamente, poderia levar-nos a uma democracia deliberativa à brasileira.

Será que o tema da democracia direta é objeto de discussões e reflexões apenas no eterno país do futuro, como pensou e escreveu Stefan Zweig sobre o Brasil?

Não, é a resposta a tal questionamento sobre a possibilidade do exercício da democracia direta pela via de mecanismos políticos no resto do mundo democrático espalhado no globo terrestre.

Nos Estados Unidos, em especial nos estados da região Oeste, com destaque para a Califórnia, por exemplo, este é um tema bastante discutido, já acumulando milhares de livros, ensaios, artigos e até exemplos práticos sobre a participação dos cidadãos por meio de mecanismos de democracia direta, que funcionam como suplemento do projeto republicano da representatividade política, desenhado e armado com fundamento nas chamadas reflexões Madisonianas, de cujas discussões representantes californianos não puderam participar, pois, quis o destino, ou o tempo, senhor da razão, a conquista do Oeste só se daria um pouco mais adiante.

E quais seriam os mecanismos de democracia direta que suplementariam a representação republicana desenhada pelos pais fundadores da bicentenária constituição norte-americana, um texto que recebeu apenas vinte e sete emendas em dois séculos de existência, mas que, segundo os estudiosos do tema, sofreu modificações importantes através de meios informais, sem o necessário aprofundamento das discussões no Congresso Nacional e sem uma consulta democrática à cidadania?
Sem maiores surpresas, tais mecanismos são: a iniciativa popular, o referendo e a revogação do mandato parlamentar, todos do pleno conhecimento das elites políticas brasileiras, os dois primeiros deles até inseridos em nosso texto constitucional vigente, e o terceiro adotado em nossa primeira constituição republicana de 1889.

Antes de quaisquer comentários sobre os referidos mecanismos utilizados para o exercício da democracia direta nos Estados Unidos, os estudiosos acadêmicos naquele país apontam a principal motivação que tem fortalecido este ativismo de modo crescente: a perda da confiança dos cidadãos no funcionamento dos tradicionais poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

E essa crescente perda de confiança nas instituições do modelo político norte-americano tem sido estimulada, dentre tantos outros fatores, apontam centenas de estudos e pesquisas, pelo sistema de financiamento das eleições, pelos meios de comunicação privados, incluindo-se aqui as modernas redes sociais, e, finalmente, pela polarização da política norte-americana.

E os norte-americanos acrescentam que o mau funcionamento das três esferas de governo tem levado ao surgimento de disfunções governamentais, exageros judiciais e favorecimentos de grupos de interesses pelo legislativo, e por causa disso o eleitorado tem aventado a necessidade de reformas constitucionais, pois a presente ordem constitucional, velha de dois séculos, tem contribuído para causar desastres na política, ou, mais enfaticamente, resultados governamentais que não interessam a nenhuma facção política, em poucas palavras, resultados que não são do interesse de ninguém, claramente decorrentes do mau funcionamento das instituições públicas entregues a políticos negligentes e gerentes ineficientes ou causados, de propósito, por administradores privados corruptos.

Pode-se perguntar que tipo de desastres na política, essa mundialmente tão respeitável ordem constitucional norte-americana, por tanto tempo tão elogiada e copiada, tem causado nas terras situadas acima da linha do Equador?

Os estudiosos norte-americanos citam como exemplos de descaminhos pelo menos quatro conhecidos desastres na política do seu país que, no seu entender, aconteceram em decorrência da ordem constitucional vigente nos EUA: a) o ataque terrorista às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001, b) a inundação de New Orleans provocada pelo Furacão Katrina, em 2005, c) a crise financeira de 2008, e, d) a crescente desigualdade de renda e da riqueza nos Estados Unidos, nas últimas três décadas do século XX.

Em um breve resumo, os referidos desastres na política dos EUA, de acordo com os próprios norte-americanos, estão estreitamente vinculados a defeitos incentivados pela ordem constitucional vigente no país desde 1789, e são assim explicados:

a)      Nessa versão, os ataques terroristas às Torres Gêmeas só puderam acontecer porque o Congresso norte-americano foi negligente, ao acreditar que o serviço de inteligência de uma potência econômica e bélica como os EUA funcionária a contento com tantas agências, por exemplo, com o FBI cuidando de questões internas, a CIA se ocupando das questões externas, e ainda com a NSA (National Security Agency) com o poder de acioná-las sob as ordens do Secretário da Defesa, ou seja, as duas agências não tinham independência para agir por conta própria. Isso sem contar que os militares dispõem dos seus próprios serviços de inteligência, o que, inevitavelmente, aumenta o tempo de resposta do país em matéria de ataques externos. Ao mesmo tempo em que o sistema de inteligência para defesa do país era tão dividido, o Departamento de Defesa, aliado a seus representantes no Congresso Nacional, se perdiam permitindo a criação de mais de dezenove diferentes comissões e subcomissões, que nada entendiam do tema serviços de inteligência, graças à ordem constitucional que delegou à casa legislativa o direito de tratar como lhe aprouvesse de tão fundamental assunto em um tempo completamente diferenciado da realidade tecnológica em que viveram os formuladores da Constituição em 1789. Em números, como apreciam os norte-americanos, os ataques às Torres Gêmeas mataram 3.000 cidadãos e causaram um prejuízo calculado em U$ 500 bilhões.
b)      A inundação da cidade de New Orleans pelas águas do Lago Pontchartrain, provocada pelo Furacão Katrina, em agosto de 2005, é considerado um desastre da política pelos próprios analistas norte-americanos em razão da ordem constitucional criada pela separação dos poderes, segundo eles um sistema federalizado que, no geral, não compartilha o poder, em outras palavras, sempre que uma ação exigir coordenação, cada esfera de governo tem o direito de veto sobre o resultado do processo político, como estabelecido pela Constituição de 1789, pois a ideia à época era proteger ao máximo os cidadãos de possíveis ações autoritárias do governo federal. Assim, o fracasso na resposta ao desastre em apreço expôs uma das fraquezas da constituição norte-americana: a ausência de um mecanismo para coordenar o trabalho dos governos local, estadual e federal. Apontam os analistas deste caso que se pode identificar a fragmentação dos poderes e das autoridades governamentais, estabelecida pelos constituintes de 1789, até mesmo antes do desastre, pela falta de coordenação entre o planejamento da construção das barreiras de contenção das águas do Lago Pontchartrain, pelo governo federal, e a responsabilidade pela manutenção das mesmas pelos governos local e estadual. Resultados do desentrosamento político-governamental: 1.400 mortos, milhares de cidadãos feridos e desabrigados e bilhões de dólares de prejuízo para as economias local, estadual e federal.
c)       O terceiro desastre se materializa com a crise financeira de 2008. Apontam os analistas norte-americanos que este era um desastre anunciado há muito tempo, pois a circulação do capital nos EUA é respeitada como fator primordial para o dinamismo desenvolvimentista do país, mas as rédeas que procuram controlar o segmento do capital financeiro são bastante curtas, como denunciou Karl Marx. Assim, os representantes do capital financeiro conseguiram impor uma “desregulamentação” do sistema para deixa-lo assumir mais riscos, com a desculpa de que isto criaria mais riqueza para todos. Mais uma vez, a existência de múltiplas agências de controle produziu um acordo que possibilitou uma maior confiança em mecanismos de mercado do que em uma séria estrutura regulatória e de supervisão do sistema financeiro, que fosse discutida pelos técnicos do Tesouro Nacional e aprovada pelo Congresso Nacional e que seria conduzida pelas principais autoridades monetárias federais. Em setembro de 2008, o Secretário do Tesouro tentou convencer o Presidente Bush a apoiar uma ajuda federal de enorme custo ao sistema bancário, pois a economia inteira já estava ameaçada pela crise financeira. A explicação dada sobre a crise escondeu do presidente que a proposta de desregulamentação fazia parte de um ciclo iniciado nos governos Carter e Reagan e tivera sua origem na era do New Deal, contando com o apoio de políticos e autoridades monetárias vinculadas aos partidos que vem comandando a política desde o projeto de Franklin Delano Roosevelt, criador de uma “ideologia da regulamentação governamental”, responsável por quase quatro décadas de estabilidade sem uma grande crise. Porém, nos anos 1980 o setor-chave do sistema financeiro, liberado do controle da estrutura básica de regulamentação vigente, criou o “mercado de derivativos”. Na sequência, o fracasso em regulamentar o mercado de derivativos e muitas outras inovações, tornou possível uma década de “frenesi financeiro" que acabou por gerar a pior crise financeira e a mais profunda recessão econômica que o mundo enfrentou desde a Segunda Guerra Mundial. Para interrompê-la, as autoridades monetárias dos EUA buscaram a legitimação que só o Congresso Nacional do país podia dar, abrigado pela arquitetura constitucional construída no século dezoito, ainda vigente como ordem constitucional contemporânea, e apenas ele capaz de autorizar o poder Executivo a liberar bilhões de dólares do Tesouro Nacional para salvar o sistema financeiro e os bancos responsáveis pelo desastre. No entanto, por ironia, foi esse mesmo Congresso Nacional norte-americano que permitiu o surgimento de um defeituoso esquema regulamentador do sistema financeiro, a desregulamentação que possibilitou empréstimos predatórios e a mais irresponsável especulação no comércio da construção civil e do financiamento habitacional nos EUA de todos os tempos, o que atraiu o segmento de renda mínima, a classe média e os ricos. Para completar o desastre, nenhuma explicação sobre a crise foi dada ao público que teve que suportar suas consequências, e o prejuízo total materializou-se com US$ 13 trilhões desmanchando-se no ar, uma riqueza correspondente ao Produto Nacional Bruto de um ano inteiro da produção econômica dos EUA. Enfim, o desastre da crise financeira de 2008 causou a pior recessão dos últimos setenta anos, destruindo empresas e economias nacionais, como a da Islândia, por exemplo, chegando-se ao risco de levar o mundo a uma nova guerra mundial.
d)      O quarto desastre considerado traduz-se na questão da desigualdade de renda nos EUA. Os estudiosos norte-americanos incluem a desigualdade de renda e a distribuição da riqueza como um desastre que é piorado pela estruturação do sistema político e pelas políticas públicas que ele produz sustentado pela ordem constitucional vigente. Argumenta-se que o sistema político tem se mantido à margem da questão do crescimento da desigualdade e se esforçado na utilização de vetos criados pela Constituição para impedir ações destinadas a aliviar essa tendência, e reações populares como o movimento Occupy Wall Street são considerados como mecanismos partidários de esquerda, mas a classe média e a de rendimento mínimo nesse país nunca foram e nem são de esquerda, mesmo em assuntos econômicos. Nesse sentido, de modo prático, sem ideologia, denuncia-se a estagnação da renda de um trabalhador de classe média nas últimas três décadas do século vinte, graças à influência de grandes corporações para aumentar seus lucros, por exemplo, no mercado de subsídios ao etanol. De outro lado, registram os estudos acadêmicos a queda da influência política das classes de renda mínima sobre o sistema político que não mais responde ao sentimento do público na luta pelo aumento do rendimento mínimo, que, como tema encaminhado aos políticos em Washington, tem sido constantemente procrastinado, ofuscado, impedido ou servido apenas para jogos de cena nas discussões do legislativo sobre o assunto. A desculpa de que muitos vetos constitucionais asseguram a discussão mais adequada de um tema não pode se aplicar à questão da desigualdade de renda mínima, pois esta permanece, em 2014, nos patamares de 2007, enquanto a renda dos dez por cento mais ricos da população cresce constantemente a cada ano. Enfim, os segmentos de classe mais desfavorecidos denunciam que se vive em uma democracia desigual, uma verdadeira oligarquia conduzida pelos mais ricos em seu próprio proveito, e que esta desigualdade aponta o que é problemático com a democracia norte-americana: a ordem constitucional. Em termos comparativos, a Associação Americana de Ciência Política aponta disparidades crescentes de desigualdade de renda entre os EUA e países como o Canadá, a França a Alemanha a Itália e muitos outros países em democracias industrializadas avançadas, pois, enquanto nesses países a renda é muito menos concentrada, da metade dos anos 1970 e até 1998, os mais ricos norte-americanos aumentaram sua renda de duas a três vezes mais do que os mais ricos na Alemanha, na Inglaterra e na França, por exemplo. Temas arriscados, de cunho ideológico, como o imposto sobre a propriedade, impopular entre as classes mais desfavorecidas, nunca são sequer discutidos pelos congressistas, que se utilizam do poder de veto e de manobras legislativas para manter o status quo prejudicial aos mais pobres, sempre se apoiando em conceitos como separação de poderes, federalismo e o poder do Congresso Nacional para estruturar suas próprias operações e decisões.
Em conclusão, o povo norte-americano não se deixou bestializar como nós brasileiros no início da nossa República, e seus acadêmicos apontam que a perda de confiança dos cidadãos nos governantes de seu país teve início há muito tempo, pelo menos desde 1861-1865, quando os brancos sulistas se opuseram ao desmonte da estrutura escravagista no século dezenove e deflagrou-se a carnificina da Guerra Civil entre o norte e o sul dos Estados Unidos, com mais de seiscentos mil mortos em apenas quatro anos de conflito. Por isso mesmo, hoje lutam fortemente, com fundamento no exemplo da Califórnia, pela adoção de mecanismos de democracia direta que suplementem o sistema político e a ultrapassada, para eles, ordem constitucional norte-americana.

E nós, brasileiros, o que temos a dizer sobre nossos desastres políticos, nossa ordem constitucional e nossos mecanismos de democracia direta?

Ora, nós brasileiros estamos imersos em uma terrível embrulhada política que, para utilizar uma invenção nacional, se assemelha a um trepidante enredo de telenovela, graças às emoções causadas por surpresas diárias, por exemplo, com a prisão do próprio carcereiro-condutor das autoridades e celebridades envolvidas no imbróglio, o “japonês da Federal”, cuja máscara foi bastante procurada pelos foliões de rua no tradicional carnaval brasileiro.

Nossos mais recentes e mais importantes desastres políticos tem apelidos carinhosos, traduzem a capacidade humorística do caráter nacional, que perde um amigo mais não perde a piada: o primeiro deles é o “mensalão”, e o segundo, o “petrolão”. Ambos os truques fazem parte de uma antiga trama política para arrecadar recursos financeiros dos cofres públicos, desdobrada em duas ações em curto espaço de tempo, no mesmo governo petista, liderado por Luís Inácio Lula da Silva, fruto da engenhosidade e da pressa dos nossos líderes políticos que, contrariando as reflexões de Max Weber, vivem, a um só tempo, da política e para a política, e que, dessa vez, exageraram na dose, pois desde muito tempo vem assaltando as burras públicas impunemente, em especial da estatal do petróleo, a Petrobrás, a quem já se sugeriu mudar o nome para Petrobrax a troco de um “pixuleco” de apenas R$ 2 milhões, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

James Madison, um dos louvados pais fundadores da Constituição norte-americana de 1789, antes de trabalhar na sua construção, refletiu sobre os vícios da jovem política do seu país recém-libertado do jugo inglês, e saiu-se com um texto muito conhecido na academia do Tio Sam: “The vices of the american political system” (Os vícios do sistema político americano). O sistema político brasileiro também tem apresentado muitos vícios, mas o pior deles, sem sombra de dúvida, é o vício que os nossos políticos tem de se apoderarem dos dinheiros arrecadados do cidadão brasileiro. Outro vício político brasileiro que desmoraliza e corrompe a política nacional é o da imunidade parlamentar com direito à prerrogativa de foro.

Dessa vez, o assalto de bilhões de reais ou de dólares às arcas da Petrobrás e de outras organizações estatais foi de tamanha ordem que “botaram água pelo ladrão”, e que ladravazes! , e os políticos responsáveis foram “apanhados com a boca na botija”, e haja botijas! , ensejando a oportunidade de um ativismo judicial que poderá terminar por fazer uma faxina geral para destroçar as quadrilhas políticas no poder a tantas décadas, assim, quem sabe, renovando para melhor os hábitos e costumes políticos em nosso país.

Para que isso aconteça de verdade, no Brasil, a parte não contaminada da política nacional terá que se levantar em um movimento que renove as práticas políticas, eliminando-se do cenário da Praça dos Três Poderes, de uma vez por todas o falido e desmoralizado presidencialismo de coalizão, inclusive aceitando dividir as decisões da política no Legislativo contando com a participação dos cidadãos através da adoção e permanente utilização de mecanismos de democracia direta, como a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito e a revogação do mandato representativo.

Ousamos afirmar que sem a adoção de tais mecanismos de democracia direta, qualquer proposta de mudança do modo de fazer política em nosso país que se recuse a incluir a participação popular, se denunciará como continuísmo político oportunista destinado ao fracasso, pois o povo está desiludido e cansado dos jogos políticos que só favorecem os poderosos e os abastados.

Além do uso de tais mecanismos de democracia direta, dentre outras medidas, haverá que se limitar a prerrogativa de foro para autoridades governamentais e parlamentares, prevista na Constituição de 1988, como se faz nos EUA, onde existe uma justiça igual para todos, e como já foi no Brasil de 1834 até 1969, quando deputados e senadores jamais tiveram essa prerrogativa, que protegia apenas a instituição, o cargo da autoridade. Além de se eliminar tão aristocrático mecanismo constitucional, passando todos a serem julgados pelo crime cometido já em primeira instância, vale lembrar que ele é fruto de uma constituinte responsável por uma Carta Magna republicana e apelidada de cidadã.

Outra medida inadiável e de fundamental importância para a construção de um país do futuro, deverá ser a modificação do atual centralismo federalista, deslocando-se uma parte do poder tributário delegado à União para as unidades estaduais e municipais, sem deixar de refazer o atual sistema de imposto de renda sobre a pessoa física, para que o cidadão de renda mínima pague menos imposto que os cidadãos considerados milionários e bilionários. O sistema eleitoral também pede transformações, inclusive do seu atual esquema de financiamento, totalmente dominado por uns poucos poderosos conglomerados, de bancos privados e de empresas do setor da construção civil. O apoio logístico dos marqueteiros políticos que usam a telemática para mentir sobre a realidade nacional, favorecendo políticos desonestos, é outro segmento da política brasileira que deverá ser melhor regulamentado.

Mas será de fundamental importância que se tome o devido cuidado para impedir que os mecanismos de democracia direta se transformem em bandeira exclusiva, e caiam nas mãos dos arautos do esquerdismo infantil que pregam a ascensão de um único partido ou de um único líder populista e a defesa de um projeto único de poder, como foi tentado na prática, sem sucesso, na Venezuela nossa vizinha, e aqui no Brasil, em discurso que não vingou, nos últimos tempos.

Enfim, para concluir tão longa reflexão sobre a política e a constituição, devemos lembrar que a descrença no desempenho dos políticos e as manobras para mudar os textos constitucionais estão presentes no mundo inteiro, em todos os tempos de sua quinhentista existência, pois até Charles de Gaulle, um herói do mundo e da França contemporânea, assim agiu quando inventou um parlamentarismo semipresidencialista que a cultura política da terra de Montesquieu apoiou e continua em pleno funcionamento.


Faz-se urgente que reinventemos a política em nosso conturbado país do futuro que nunca chega, e nossa esperança está entregue nas mãos dos políticos que podem ajudar nessa inadiável transformação, porque, se as relações políticas que vivenciamos no Brasil apontam uma democracia decadente, e como ensinou Karl Marx, na 11ª tese dirigida a Ludwig Feuerbach, elas refletem um estado de coisas que deve ser abandonado, superado, transformado, para que a democracia renasça, antes que o povo decida agir por conta própria e, mais uma vez, aventureiros disso saibam tirar proveito.