Para muito além da derrota do PT
nas eleições municipais de 2016, que evidenciou o acerto do impeachment da
presidente Dilma Vana Rousseff e retirou-lhe trinta e dois dos cinquenta e
quatro milhões de votos que a elegeram em 2014, incluindo-se até o
ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva que alegou a condição de septuagenário
para não registrar seu voto neste pleito e ela própria, que declarou também não
ter votado por não haver um candidato de sua preferência, emergiu das urnas a
maior abstenção já vista em participações eleitorais brasileiras, cuja
principal marca é a obrigatoriedade de comparecimento da cidadania para votar, acompanhada
da ameaça de sofrer punições variadas, começando pelo pagamento de multas, que
podem tornar mais difícil o seu cotidiano no país de bruzundangas burocráticas.
Somados os números de abstenções,
votos brancos e votos nulos, o resultado superou o número de votos que elegeram
os prefeitos, primeiro de São Paulo, depois do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e
Porto Alegre, ao final das apurações nestas capitais, no primeiro e no segundo
turnos das eleições, comprovando-se, assim, o descrédito dos políticos e o
desencanto do eleitorado com o desempenho descomprometido dos partidos
políticos e seus dirigentes para com as verdadeiras demandas de necessidades
afligindo as populações brasileiras.
No universo das abstenções de
votos em branco e votos nulos destaca-se o Rio de Janeiro, com um volume de
mais de quarenta por cento de cidadãos eleitores que rejeitam e desdenham da
fórmula secular do sistema eleitoral como via democrática na escolha de seus
representantes para comporem os Poderes Executivo e Legislativo, instituições
expostas nos jornais, revistas semanais e televisões como antros de indivíduos
corruptos, venais e defensores de legislação que os perdoa, seguidamente, do
cometimento comprovado de ilicitudes destinadas a esvaziarem os cofres públicos
em seu próprio proveito.
Os políticos, em expressiva
maioria, parecem não enxergar o óbvio: vivenciamos uma Síndrome da Fadiga Eleitoral, que o crescente número de partidos políticos jamais
resolverá, pois esses senhores e essas instituições se apropriam dos poderes
Legislativo e Executivo e apenas se preocupam em tentar salvar um modelo
esgotado, e nem mesmo a luta incessante e cotidiana do Poder Judiciário será
capaz de reformar ou devolver aos trilhos do caminho responsável e justo, como
esperam os cidadãos.
Um parênteses: o que denominamos de Síndrome da Fadiga Eleitoral afeta o mundo inteiro, e é acompanhada de reações
enraivecidas dos cidadãos em todo o espaço geográfico dos cinco continentes,
basta prestar atenção no Brexit inglês, que apesar da importância da economia
do Continente para as finanças inglesas abandonou a União Europeia, balizou o
caminho de um Reino Unido desintegrado e cada vez mais dividido entre cidadãos
empobrecidos e banqueiros muito ricos, e, por ironia, como diria Shakespeare:
“Quem mais sofrerá, senão a maioria que
votou pela saída?”; no surgimento da candidatura vitoriosa do xenófobo Donald
Trump nos EUA, mesmo que ele tenha confessado ser um hábil sonegador de
impostos; nos dez meses sem governo, graças à indecisão do parlamento espanhol
para eleger Mariano Rajoy primeiro-ministro; no fracasso de François Holande em buscar uma solução para
abrigar a revoada, quem imaginaria, dos antigos povos colonizados sobre o
território francês; no inaceitável drama venezuelano do desrespeito à
Constituição pelo presidente Nicolás Maduro,
que se recusa em aceitar a convocação de um plebiscito revogatório inventado
por Hugo Chaves e inserido no texto constitucional como pétrea cláusula
democrática!; e, no caso brasileiro, além da enxurrada de abstenções de hoje, a
enxurrada de cidadãos que ocuparam as ruas em 2013 para protestar contra as
decisões políticas que lhes afetam o dia-a-dia sofrido, escudando-se no aumento
de 20 centavos nas tarifas dos transportes coletivos, na verdade descontente
com a incapacidade política para
encontrar soluções administrativas democráticas e enquadradas nos limites das
finanças públicas, e tudo foi feito em meio ao anarquismo dos black blocs que acompanhavam a movimentação das ruas e aproveitavam, como
sempre, para vandalizar vitrines bancárias, carros estacionados e latas de lixo,
o que também não deixa de ser uma forma de protesto.
Em 1762, Jean-Jacques Rousseau,
na conhecida obra O Contrato Social, já denunciava: “O povo da Inglaterra engana a si mesmo
quando imagina que é livre; de fato, ele é livre somente durante o período para
a eleição dos Membros do Parlamento, porque, logo em seguida, tão logo um novo
Parlamento é eleito, o povo é novamente acorrentado, e se transforma em nada”.
Em seguida, para comprovar o
acerto da análise de Rousseau, surgiu Edmund Burke, filósofo e político
britânico, famoso entre os estudiosos de Ciência Política, que se tornou célebre,
entre tantos outros feitos pelo ensaio Reflexões
sobre a Revolução Francesa, de 1790, por argumentar que,
depois de eleito, os eleitores não podiam moldar-lhe a consciência política
para o enfrentamento dos debates parlamentares, ou seja, tão logo empossado
como representante dos cidadãos eleitores, ele exigia o devido respeito
democrático à sua condição de aristocrata político que tomava decisões
políticas de acordo com a posição que ocupava na hierarquia das classes
sociais.
Aliás, da obra acima referida,
podemos citar o pensamento aristocrático de Edmund Burke, traduzido do original
em língua inglesa: “A ocupação de um cabeleireiro ou de um operário que produz
velas não pode ser motivo de orgulho para ninguém – isto para não nos
referirmos a outras profissões mais subservientes. Tais descrições de
profissões humanas não devem sofrer discriminação da parte do Estado; mas o
Estado sofrerá discriminação se a estes profissionais, individual ou
coletivamente, for permitido legislar... Tudo
deve ser aberto, mas não para qualquer indivíduo. Nenhuma rotatividade; nenhuma indicação
por
sorteio:
nenhuma espécie de eleição que funcione de acordo
com o espírito de sorteio
ou de rotatividade pode ser boa em um
governo que tem que entender de assuntos múltiplos e tão variados”. Neste instante da história da política moderna se deu
início ao descarte do modelo Ateniense bi-representativo de participação
política, de se adotar a eleição e o sorteio para o preenchimento de cargos e
funções públicas.
Ora, a raiva dos cidadãos de hoje comprova o
argumento rousseauniano de outrora: depois das eleições, os eleitores passam a
nada significar para os eleitos, que, na sua imensa maioria, tão logo
empossados nas novas funções políticas, tratam de cuidar e de defender seus
próprios interesses pessoais, como no recente exemplo da Câmara de Vereadores
do Rio de Janeiro, cujos integrantes estão tentando aprovar o direito de se
aposentarem após três mandatos, recebendo vencimentos no total de R$ 15.000,00,
e somarem a esta mais uma aposentadoria de R$ 12.000,00, no caso de
desempenharem função pública por uma única vez, por mais uma legislatura, por
exemplo, como secretários municipais, o que, para alguns deles, não seria muito
difícil no contexto de negociações políticas com os ocupantes do cargo de
prefeito. No caso de Brasília, este tipo de negociação espúria também acontece,
pois o Tribunal de Contas local está infestado de ex-sindicalistas defensores
de uma política sindical de resultados, ou melhor, de vantagens para a própria
categoria; de ex-políticos envolvidos em falcatruas e de ex-administradores
regionais todos buscando usufruir dos altos salários e aposentadorias
oferecidos pelos tribunais de contas estatais, um porto seguro do qual não
dispõem os eleitores que os fizeram seus representantes. E no Congresso
Nacional, parlamentares apavorados com possíveis desdobramentos da redentora
Operação Lava Jato, fazem circular, sem que se possa identificar o pai, ou a
mãe, uma proposta de perdão dos crimes de caixa-dois, desde que tenham sido
cometidos antes da vigência da nova lei sobre crimes de corrupção política,
prestes a ser aprovada por imposição da sociedade.
Um pouco antes de Rousseau, com a
adoção do sistema dos três poderes pela Inglaterra, Charles de Secondat, Barão
de Montesquieu, deixou como legado triunfal O
Espírito das Leis, de 1748, ensaio
que consagra e registra a vitória do modelo de separação dos poderes em Executivo,
Legislativo e Judiciário, associado a um sistema eleitoral ungido como democrático
porque fundado no conceito do sufrágio universal, em poucas palavras, no
direito de cada cidadão representar um voto legítimo e intransferível. Bania-se,
assim, o justíssimo modelo bi-representativo das cidades-Estado da antiga
Grécia, pelo qual cargos e funções públicas se efetivavam por eleição e também por
sorteio.
Eleições por sorteio? Isso deve ser coisa de
mentes desocupadas ou enlouquecidas que querem destruir o democrático sistema
eleitoral vigente há pelo menos dois séculos. Sim, como denunciou Jean-Jacques
Rousseau, há dois séculos e meio, hoje um sistema eleitoral cada vez mais
influenciado pelos modernos meios de comunicação de massas que se rende
prazerosamente ao poder do dinheiro que flui aos borbotões dos bolsos e dos
Departamentos de Corrupção dos conglomerados empresariais da Dona Zelite sócia
de Luis Inácio Lula da Silva, uma elite que, por sua vez, se associa aos
políticos para o assalto aos cofres públicos em nome da inclusão social, uma
galinha-dos-ovos-de-ouro que não se pretende matar, pelo menos no Brasil e nos
demais países do cinturão bolivariano que respira o ar enganador da democracia
ungida pelas urnas, que se esgota no próprio instante da deposição do voto na
urna ou do registro eletrônico da vontade popular.
Mas, como era mesmo que
funcionava o sistema bi-representativo das calendas gregas, misturando eleições
e sorteio para a ocupação de cargos públicos?
No decorrer do quinto e do quarto
séculos antes de Cristo, na antiga cidade grega de Atenas, de 30.00 a 60.000
cidadãos atenienses disputavam, na ágora, cargos e funções no Conselho dos 500,
na Corte do Povo, nas Assembleias do Povo e nas Magistraturas, os mais
importantes órgãos de governo, e validavam ocupações públicas preenchidas por
meio de sorteio e de eleições.
Vale a pena descobrir, por
exemplo, que o Conselho dos 500 era formado por quinhentos cidadãos escolhidos
por sorteio, e esse órgão constituía o corpo central de governo da democracia
ateniense, sendo responsabilizado pela criação da legislação, pela organização
da agenda das Assembleias do Povo, pelo controle das Magistraturas, pelos
negócios estrangeiros ou diplomacia, e, finalmente, pela fiscalização das
finanças e das políticas públicas. E tudo isso sem contar com a parafernália
que a telemática põe à disposição dos senhores governantes do mundo moderno.
Nas Assembleias do Povo, abertas
a todo cidadão que delas quisesse participar, desde que não fosse criança,
escravo, meteco ou mulher, formadas por mais ou menos 6.000 indivíduos, eram
votadas as leis propostas pelo Conselho dos 500, observada a sua legalidade, e selecionados
os servidores públicos de alto nível que se inscreviam para serem escolhidos
por eleição majoritária para cargos públicos.
A Corte do Povo era também
composta por mais ou menos 6.000 cidadãos, e escolhia seus membros por sorteio,
todas as manhãs, selecionando dentre aqueles cidadãos presentes e inscritos por
iniciativa própria quem responderia pelos julgamentos do dia, transformando-os
em magistrados que se responsabilizavam pelo pronunciamento de sentenças, mas
antes se certificando da legalidade das decisões, de acordo com as leis
aprovadas pelas Assembleias do Povo, e sua imediata implantação de acordo com
cada caso. Vale observar que se era juiz apenas por um dia.
As Magistraturas permanentes eram
formadas por 700 magistrados, dos quais 600 eram escolhidos por sorteio entre
candidaturas que se apresentavam por sua própria iniciativa, e as cem vagas
remanescentes eram preenchidas pela via eleitoral.
Os cidadãos eleitos para o
Conselho dos 500 e aqueles que se tornavam Magistrados permaneciam no cargo por
um ano, e recebiam pagamento pelo serviço prestado. O tempo máximo de
permanência no Conselho dos 500 era de dois períodos não consecutivos, e o
modelo de participação democrática permitiu que entre 50 a 70% dos cidadãos com
idade acima de trinta anos se sentasse pelo menos uma vez no Conselho. Modelo
mais democrático nunca mais foi visto, ou melhor, foi reproduzido, com
alterações circunstanciais apenas em Veneza (1268 -1797) e em Florença (1328 –
1530), na Itália, e em Aragão (1350-1715), na Espanha.
A fórmula democrática da antiga
Atenas, de dois séculos e meio passados, deixa-nos entender que o Conselho dos
500 controlava o Poder Executivo, enquanto a Corte do Povo preenchia o papel de
Poder Judiciário. No entanto, nem tudo eram flores na Grécia berço da
democracia: não podemos esquecer o julgamento de Sócrates, símbolo maior da
miserável condição humana que está sempre sujeita a imperdoáveis conflitos
ideológicos, nesse caso, maculando o modelo democrático ateniense.
A experiência da antiga Grécia foi
transformada pela burguesia revolucionária do final do século XVIII, graças à
ação dos filósofos e rebeldes americanos e franceses, que não queriam admitir a
participação popular nas esferas governamentais, uma tradição que permanece até
os dias de hoje: James Madison, considerado o pai intelectual da Constituição
americana, argumentava estar convencido, como se descobre no seu ensaio número
10 de O Federalista, que as democracias que antecederam o movimento
revolucionário contra a Inglaterra tinham sido “espetáculos de turbulência e desentendimento”,
e, em geral, “têm vida curta e se mostram violentas pelo número de mortes
causadas”.
Argumentos contra a participação
popular, extremamente incentivada no nascedouro do que os gregos chamavam de
democracia e, a partir dessa ideia, construíram e puseram em funcionamento o
modelo ateniense de governo, além de servirem como pano de fundo para obras
clássicas como A República, de Platão e A Política, de Aristóteles, em outras palavras, as falas de Edmundo Burke e
James Madison, entre tantas outras, criaram o contexto para que, dessa vez, fosse
fortalecido e escolhido o termo “república” em substituição ao vocábulo “democracia”,
e dentre as duas formas básicas de escolha dos representantes daqueles que se
multiplicavam em velocidade progressiva, em grande parte graças a uma mais
adequada organização da sociedade, deu-se preferência ao sistema de eleições em
detrimento do seu par inseparável, o sistema de sorteios.
E assim as lideranças revolucionárias,
nos Estados Unidos e na França, contando com o apoio da tipologia da separação
tripartite dos poderes, criada pelos ingleses e anunciada ao mundo por
Montesquieu, adotaram a república democrática de fato e de
direito, solução política que tomou conta
da maior parte dos espaços geográficos nacionais no mundo inteiro, uma
aristocrática escolha de quem empalma o poder, seja ele um ungido da direita ou
um revolucionário da esquerda política, e que serve até para justificar o
bolivarianismo do ex-presidente Hugo Chávez, o “socialismo do século XXI” que
se encontra acossado nas ruas de uma Venezuela à beira de uma guerra civil.
John Adams, no ano da
independência norte-americana, 1776, escreveu Thoughts on Government (Reflexões sobre o Governo),
ensaio em que afirma que “a América é muito grande e muito populosa para ser governada diretamente, e este fato impede que se adote simplesmente o modelo de Atenas ou o de
Florença, porque eles não funcionariam nessa realidade”, uma análise da qual não se pode discordar. Adams, que
se elegeu presidente dos Estados Unidos, nessa mesma época, argumentou que o
passo mais importante a ser dado, de acordo com a realidade norte-americana,
seria “delegar o poder da maioria
para uns poucos dos cidadãos mais sábios e melhores”, pois estes
representantes “pensariam, sentir-se-iam, raciocinariam e agiriam como o resto da sociedade”, em
resumo, constituiriam “uma miniatura, um retrato exato da maioria do povo”.
Hoje sabemos que, em qualquer espaço geográfico desse vasto mundo, um banqueiro
não entende as necessidades e as reclamações do povo como pode fazê-lo a esposa
de um pobre padeiro, por exemplo. Um banqueiro é um especialista em dinheiros, em
fabricar lucros e cobrar juros, cada vez mais altos, a esposa do padeiro
entende da luta pela sobrevivência cotidiana, cada vez mais difícil.
Na sequência desta toada, em
fevereiro de 1788, no Federalista
número 57, James Madison escreveu: “O
objetivo de qualquer Constituição é - ou
deve ser – antes de tudo escolher como dirigentes as pessoas mais capacitadas
para discernir e mais eficientes para assegurar o bem-estar da sociedade;
depois, tomar as mais seguras precauções no sentido de conservá-las eficientes
enquanto desfrutarem a confiança pública. O
processo eletivo para escolher dirigentes é a norma
característica do governo republicano. Os meios com que conta esta
forma de governo para evitar sua degeneração são numerosos e variados. O mais
eficaz consiste na limitação do período dos mandatos, visando a manter uma
adequada responsabilidade perante o povo”.
Ora, a limitação dos mandatos
eletivos, sugerida por James Madison, nunca foi observada, pelo contrário, incentiva-se,
até hoje, que os políticos construam uma carreira profissional elegendo-se e
reelegendo-se até o fim de suas vidas, e mesmo atraindo para o mundo da
política seus filhos, suas esposas, suas amantes e seus amigos, enfim, parentes
e aderentes, fortalecendo-se, assim, o costume de gerações familiais dominando
a política por tempos duradouros, nas esferas municipais, nas estaduais e na federal,
permitindo-se e incentivando-se a criação de nichos de mercado político,
partidários e/ou familiais, como se pode observar tanto nos Estados Unidos, dos
Bush e dos Clinton, quanto no Brasil, dos Sarney, dos Neves e dos Magalhães.
E assim, compreendemos que Adams
e Madison se entendiam perfeitamente, mas também compreendemos que, para a
mente dos gregos dos tempos de Sócrates e Aristóteles, devia haver a mínima
distinção possível entre os governantes e os governados, enquanto para o grande
líder e pensador James Madison tal distinção era obrigatória.
Além dos pensadores
norte-americanos, o francês Alexis de Tocqueville observou, na prática do
dia-a-dia, a democracia republicana imaginada pelos pais fundadores, um novo
país em funcionamento, e escreveu uma obra fundamental para se tentar entendê-la:
A Democracia
na América, um livro que tem sua primeira parte publicada em 1835 e a
segunda apenas em 1840, tendo seu autor permanecido nos Estados Unidos de maio
de 1831 a fevereiro de 1832. É impressionante a capacidade de Tocqueville para
captar os detalhes da movimentação dos norte-americanos e seu esforço para
construir uma nova sociedade, livre do comando da aristocracia que acompanhava
a realeza europeia. Além de observador perspicaz da sociedade que se construía
na América, Tocqueville também se debruçou sobre os escritos dos grandes
líderes norte-americanos, e de Thomas Jefferson, ele cita: “O poder executivo,
em nosso governo, não é o único, não é talvez o principal objeto de minha
preocupação. A tirania dos legisladores realmente
é e
será
durante
muitos
anos
ainda,
o
perigo
mais
temível.
A do poder executivo virá por sua vez, mas num período mais remoto.”
Quanto à participação popular,
Tocqueville relata como política e religião se misturavam na construção da nova
sociedade: “Vivi temporariamente numa das maiores cidades da União, tendo sido
convidado a assistir a uma reunião política cuja finalidade era prestar socorro
aos poloneses e fazer chegar a eles armas e dinheiro. Assim, encontrei três mil
pessoas reunidas numa sala enorme, que fora preparada para recebê-las. Logo
depois, um sacerdote, vestindo os hábitos religiosos, adiantou-se à borda do
estrado destinado aos oradores. Os assistentes, depois de terem-se descoberto,
puseram-se de pé em silêncio, e ele falou nestes termos: Deus Todo-Poderoso!
Deus dos exércitos! Vós que destes forças e guiastes o braço de nossos pais
quando defendiam os direitos sagrados de sua independência nacional...”.
Porém, o que Tocqueville presenciou
em 1831 não era mais a participação popular como na Grécia antiga de antes de
Cristo, era o abandono das idealizações primeiras do que significava
democracia, fazendo-a repousar no princípio da representação que, por muito
tempo, cerca de dois séculos, faria dos Estados Unidos o mais poderoso país do
mundo, um republicanismo que o tempo se encarregou de transformar em paradigma eleitoral
que se mostra esgotado, sustentado em grande parte em marqueteiros, os novos
ilusionistas de multidões, capazes, com sua arte, de eleger um poste para
presidente da República.
Aristocracia, em grego, tem o
significado de “governo conduzido pelos melhores”, que o mundo moderno mudou,
em especial no caso brasileiro, para “governo dos mais espertos e mais
cínicos”, de “governo dos caras- de- pau, dos mentirosos”, dos que “conduzem o
desvio dos recursos públicos em proveito próprio”, enfim, “dos ladravazes que assaltam
as finanças públicas”, sem dó nem piedade, e que se danem os pobres e os
eleitores da República Democrática, de fato e de direito.
A propósito, os norte-americanos
de hoje se referem a Washington, a capital dos Estados Unidos, como “o brejo, a
capital que abriga uma elite voraz, corrupta e indiferente à sorte dos
humildes”, uma apreciação que não difere do que pensam os brasileiros de sua
capital, Brasília, muito embora os brasilienses não tenham muita culpa por este
fato, pois elegem apenas onze parlamentares, entre deputados e senadores, dos
quinhentos-e-noventa-e-um políticos aboletados nas bancadas do Congresso
Nacional, cuja imensa maioria, é preciso ressaltar, foi levada ao admirável espaço
urbano socialista, sonhado por Oscar Niemeyer, pelo voto do restante do povo
brasileiro; logo, não procedem as críticas nacionais contra os habitantes da
capital. Aliás, nas últimas eleições locais, 70% do eleitorado brasiliense
rejeitou o incompetente modo petista de governar, que nos legou o mais caro estádio
de futebol da Copa do Mundo de 2014.
Pedimos espaço para mais um parênteses: Donald
Trump prometeu drenar o pântano norte-americano, com certeza não vai conseguir
cumprir mais esta promessa eleitoral. Será que a Operação Lava Jato conseguirá
drenar o pântano brasiliense incrustado na Praça dos Três Poderes e o brejo
local, na Praça do Buriti?
Com a adoção do republicanismo, surgem,
a partir de 1850, os partidos políticos, a ferramenta ideal para se alcançar o
poder através do voto, e no referido início eram temidos pela aristocracia ocupante
dos palácios símbolos do governo, basta lembrar a fala de Odilon Barrot, um
senador francês, registrada por Karl Marx em passagem do O 18 de Brumário de Luís
Bonaparte: “A legalidade nos mata”,
porque a luta na época era pelo direito de votar estendido a todas as classes
sociais.
Mas, para que servem os partidos
políticos, hoje? A Lei de Ferro das Oligarquias, de Robert Michels, o sociólogo
alemão, mostra que servem para abrigar e enriquecer seus “donos”, criaturas que
se apresentam como Adolf Hitler, com o seu Partido Nacional Socialista, que
fez-se milionário com a venda do seu livro Mein
Kampf, ou como Luís Inácio Lula da
Silva, com o seu Partido dos Trabalhadores, também milionário com a venda de
suas empolgantes palestras, políticos populistas que encantam as multidões carentes de rumo ou
de comida, e falando de pureza
racial ou de inclusão social
permanecem por longas temporadas com as rédeas do poder nas mãos, para cujo
exercício democrático não estão preparados. Para tais criaturas, vale qualquer
desculpa para a tomada do poder político, seja a ocupação do espaço vital defendida pelo líder alemão, ou a necessária Bolsa Família, copiada pelo líder brasileiro.
Em resumo, os partidos políticos
servem para qualquer coisa, para tudo ou para nada. Por exemplo, para
defenderem um naco do fundo partidário ou ideias como a do orçamento
participativo, que de participação popular e democrática tem muito pouco,
servindo muito mais como propaganda enganosa de uma forma de democracia direta:
põe-se o povo para discutir a alocação de 5% dos recursos orçamentários à
disposição dos governantes e considera-se que tal ilusionismo é a mais pura
democracia.
Enfim, cansados estamos todos, os
eleitores iludidos por um republicanismo que não permite a participação direta
dos cidadãos, e que, para ser mudado, não pode simplesmente copiar a Atenas
grega de quatro mil anos atrás, mas que está reagindo, na Europa e nos Estados
Unidos, e buscando formas de democracia direta e indireta que os políticos
encastelados nos poderes Executivo e Legislativo repudiam, tanto lá como em
nossas plagas, por saberem que a descoberta, invenção e adoção de práticas que
lhes coíbam as atitudes ilícitas não permitirão a continuidade descarada do
assalto indiscriminado às finanças do Estado, as administrações viciadas em
ultrapassadas visões ideológicas que enganam não apenas as multidões de
despossuídos, mas, em especial, a grande massa de milhares de militontos, que é assim que Frei Betto
os apelidou em A Mosca Azul, que os seguem
com fanatismo absoluto.
Para concluir este ensaio sobre o
ultrapassado sistema único eleitoral, lembramos que é chegada a hora de
resgatarmos a possibilidade de adoção de um sistema bi-representativo, em que o
sorteio de cidadãos livres da submissão de vínculos partidários se torne uma
realidade, cidadãos que se apresentem voluntariamente para o trabalho político,
e, se em tempo integral, um trabalho até remunerado, uma atividade política temporária,
em paralelo às casas de representantes eleitos.
Que esta não seja uma ideia
ignorada, nem ridicularizada, porque o tempo, senhor da razão, mostrará que,
com certeza, é uma sábia ideia em tempos tão desmoralizados pela constante malversação
dos dinheiros públicos e pela má administração das organizações do Estado.
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