sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

(IV) Honduras contra o mundo: para que serve uma Constituição do lado de baixo do Equador?

O voto não é obrigatório em Honduras, mesmo assim, segundo o independente Tribunal Supremo Eleitoral do país, 61% dos hondurenhos compareceram às urnas no último dia 29 de novembro passado, e 53% dos votos legítimos foram favoráveis ao candidato Porfírio “Pepe” Lobo, que, como determina a Constituição vigente, deverá assumir o cargo de Presidente da República no dia 27 de janeiro de 2010.

O candidato Elvin Santos, eleito vice-presidente em 2005, nas eleições que guindaram José Manuel Zelaya à Presidência, obteve 35% dos votos nestas legítimas eleições de 2009, que teve trezentos observadores internacionais, mas nem um só da OEA.

Deve-se ressaltar que Elvin Santos renunciou ao cargo de vice-presidente de Manuel Zelaya, como manda a legislação eleitoral hondurenha, em dezembro de 2008, ou seja, ainda antes do início da grave crise política criada pelo presidente deposto, por sentença judicial da Corte Suprema de Justiça, em decorrência da desobediência a três mandatos judiciais legalmente amparados na Constituição de 1982, a qual, em seu Artigo 5º, estabelece o rito legal e democrático para a convocação de plebiscito ou referendo como queria o bolivariano ex-presidente.

Registre-se o fato histórico de Porfírio “Pepe” Lobo ter sido derrotado por Manuel Zelaya no pleito realizado em 2005, que, naquela ocasião, mesmo tendo conseguido apenas 23% do total de 55% dos votos registrados pelo Tribunal Supremo Eleitoral, foi promulgado vencedor, trinta dias após o encerramento do processo eleitoral, resultado que não foi contestado pelo presidente hoje eleito pelo povo hondurenho.

De tão agradecido pela promulgação dos resultados eleitorais em 2005, Manuel Zelaya nomeou o Presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, Arístides Mejia, seu Ministro da Defesa no governo que se iniciou em 27 de janeiro de 2006.

Também deve ser lembrado que a OEA e os EUA consideraram legítima a eleição de Manuel Zelaya em 2005, e apressaram-se em reconhecê-la perante as demais democracias do mundo. Hoje, no ano da graça de 2009, após reconhecer a legalidade e a lisura das eleições hondurenhas, os EUA enviaram ao Brasil um representante do Departamento de Estado, Arturo Valenzuela, cidadão norteamericano nascido no Chile, que tratou longamente do tema do pleito em Honduras.

Arturo Valenzuela reuniu-se com Marco Aurélio Garcia, o Assessor para Assuntos Internacionais do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, associado ao Presidente Hugo Chávez, da Venezuela, bancaram a presença de Manuel Zelaya como hóspede da Embaixada brasileira em Honduras, durante dois meses e meio, permitindo, assim, que o mesmo pressionasse pelo seu retorno á presidência hondurenha, utilizando-se da imunidade diplomática conferida ao Brasil pelo direito internacional.

Ao final desse importante encontro internacional, Marco Aurélio Garcia, que tanto lutou para devolver Manuel Zelaya ao poder, em nome do bolivarianismo chavista, agora lutando para retirá-lo do território hondurenho, fez ver ao representante norteamericano que “a solução da crise em Honduras” passa pela deposição do Presidente interino, Roberto Micheletti, que ele, grosseiramente, insiste em chamar de presidente de facto, além de exigir a concessão de um salvo-conduto para que o presidente legalmente deposto possa deixar o país.

Acontece que, segundo o Código Penal e a Constituição de Honduras, José Manuel Zelaya não pode deixar o território de seu país sem, primeiro, prestar contas à justiça pelos dezoito crimes que cometeu, confiando, estupidamente, no plano do bolivarianismo chavista para mantê-lo, por tempo indefinido, na presidência hondurenha.

E mesmo que a justiça e o Congresso hondurenho resolvam permitir que Manuel Zelaya abandone o território nacional, os países vizinhos não vão aceitar facilmente que o “pendenciero” político de Honduras se asile para continuar difamando, à distância, a democrática Constituição que o destituiu legalmente.

Com certeza, a Venezuela de Hugo Chávez, que tanto o incentivou e o apoiou na tentativa de um golpe bolivariano em Honduras, ou Cuba, que recebeu a chanceler de Zelaya, Patrícia Rodas, e deu eco às suas denúncias de um golpe de Estado em Honduras, o recebam com carinho e lhe deem abrigo e recursos bastantes para dar continuidade á sua luta para retornar ao poder em seu país.

Quem sabe José Manuel Zelaya Rosales decida-se por pedir asilo ao Brasil, e, com certeza, o Chanceler Celso Amorim, com o absoluto apoio do Grande Guia, apodo que pespegou no Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o concederá, com o irrestrito e confiável suporte intelectual de Marco Aurélio Garcia, seu conselheiro para temas políticos internacionais, com a indispensável cobertura de todos os “fringe benefits” que um democrático presidente deposto ilegalmente deve merecer.

O parágrafo acima encontra respaldo, por exemplo, nas declarações do Presidente Lula em fóruns internacionais contra o atual governo hondurenho, desqualificando-o e repetindo que ele é fruto de um golpe de Estado.

Enfim, nos últimos tempos, a diplomacia brasileira vem comprometendo a soberania do país, emitindo declarações pueris em situações delicadas que se apresentam até no simples diálogo entre o presidente brasileiro e presidentes de importantes nações do mundo , em especial os Estados Unidos, possivelmente por confiar na potencialidade do bolivarianismo chavista e na popularidade internacional do Presidente Lula, embora ambas não possam nem devam andar de mãos juntas.

Certas situações criadas pelas decisões de política internacional do Brasil, nesses últimos tempos políticos, transbordam os limites do que convem aos verdadeiros interesses políticos nacionais de longo prazo, precipitando o país no constrangimento de ter que voltar atrás em certas dessas decisões, além de forçar-nos a suportar análises que as qualificam como ridículas.

Vale lembrar que o Presidente Lula iniciou seu primeiro mandato enquanto George Bush ainda estava no poder, e seus assessores internacionais não titubearam em promover um encontro do brasileiro com o norteamericano, quem sabe para demonstrar que a “fera” sindicalista e de esquerda era manso, não mordia e era até muito sorridente e bem humorado para com o capitalismo que produz excedente econômico.

O Presidente Barack Obama, o primeiro negro norteamericano a chegar à presidência, substituiu a George Bush, e com Lula já transformado em astro da política mundial, na esteira de sucessivas e carismáticas aparições em palcos internacionais, amparado no sucesso do controle das contas nacionais, que lhe foram repassadas em ordem pelo governo que o antecedeu, cognominou o presidente brasileiro de “o Cara”, elogiosa gíria da modernidade cotidiana, na presença das principais lideranças do mundo, para hoje, numa crise como a hondurenha, ver uma mensagem pessoal sua ao líder brasileiro ser divulgada sem o mínimo respeito, coisa que a assessoria internacional do governo petista não teve coragem de fazer no decorrer do governo de George Walker Bush.

Parece que a boa imagem do Presidente Lula no plano internacional fez os assessores presidenciais acreditarem que o Brasil e Lula eram a “bola da vez” no cenário mundial, portanto, tudo podiam, inclusive defender o bolivarianismo e o seu projeto de intervenção em Honduras, e a soberba e a megalomania os empurraram numa avalanche de atos políticos, algumas vezes politicamente corretos e em outras, perigosamente beirando o ridículo; imagine-se como se comportariam se o Brasil já dispussesse de ogivas nucleares, submarinos atômicos e poderosos aviões supersônicos de bombardeio, como o país de Barack Obama.

A desastrada intervenção brasileira na crise política hondurenha, pode-se afirmar, é uma dessas decisões que beira o ridículo e avulta como de completa irresponsabilidade e ausência de visão política, pois o Brasil desrespeitou não só o texto constitucional de um pequeno mas democrático país, como fez questão de destacar, em fóruns internacionais, de forma grosseira e agressiva, pelas vozes da sua chancelaria, e até da presidência, que as autoridades governamentais de Honduras eram ilegítimas, acusando-as de terem desfechado um golpe de Estado, depondo José Manuel Zelaya Rosales, na verdade um presidente que, ele, sim, tentou rasgar a Constituição de seu país para transformar-se num presidente atrelado ao bolivarianismo de Hugo Chávez.

No próximo texto, tentaremos apresentar um resumo da trajetória política do ex-presidente José Manuel Zelaya Rosales.

 

(Texto elaborado e concluído em 18 de dezembro de 2009)

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

(III) Honduras Contra o mundo: para que serve uma Constituição do lado de baixo do Equador?

No complicado contexto político latinoamericano, Honduras é, sem sombra de dúvidas, uma democracia em evolução, graças ao seu texto constitucional de 1982, estruturado para impedir abusos governamentais de dominação caudilhista, sem a necessidade de apelar para o instrumental do “impeachment”, porque dispõe de mecanismos para destituir governantes e processá-los por desrespeito às normas legais aprovadas em Assembléia Nacional Constituinte, legalmente convocada de acordo com o que estabeleceu o consenso político democrático amparado pela vontade popular hondurenha.


Ainda que o desempenho das lideranças e dos partidos políticos latinoamericanos, hondurenhos inclusive, eleitos democraticamente por sufrágio universal, venha decepcionando, seguidamente, seus esperançosos eleitores, estes compreendem que as instituições democráticas são o último refúgio onde a sociedade pode buscar a defesa dos valores e princípios adotados para balizar a evolução do convívio humano com igualdade e justiça, condições exigidas para permitir a sua sobrevivência com dignidade perante o resto do mundo civilizado.


As eleições que serão realizadas em Honduras, no próximo dia 29 de novembro, um domingo, constituir-se-ão, sem sombra de dúvida, um marco definidor do verdadeiro valor do texto constitucional daquele pequeno país centroamericano, ou seja, um documento legal, aprovado por uma Assembléia Nacional Constituinte, convocada para sua elaboração e ampla discussão por diferentes correntes políticas, eleitas por sufrágio universal, aprovada democraticamente e promulgada segundo os tramites legítimos exigidos pelo ordenamento jurídico hondurenho e pelo direito internacional. 


Afinal, mesmo frente a uma gravíssima crise política, como esta provocada pelo Presidente eleito, ainda que com uma minoria de apenas 23% dos votos válidos nas eleições de 2005, última eleição hondurenha, as eleições do próximo dia 29 de novembro foram convocadas obedecendo-se ao calendário estabelecido pela Constituição de Honduras, sufragada em 1982, que recomenda eleições presidenciais a cada quatro anos, sempre no último domingo do mês de novembro, e a posse presidencial no dia 27 de janeiro do ano seguinte ao da realização das referidas eleições. 


Se o povo hondurenho comparecer massiva e ordeiramente às urnas no dia 29 de novembro de 2009, para eleger um novo presidente, a crise política terá chegado ao fim, e Honduras terá dado uma bela e irrepreensível lição de democracia ao resto do mundo, restando a José Manuel Zelaya Rosales buscar asilo político, quem sabe no Brasil, ou entregar-se às autoridades do seu país, para julgamento pela Corte Suprema de Justiça, pelos crimes que cometeu, desrespeitando normas constitucionais e outras do Código Penal que submetem a todos os cidadãos hondurenhos, presidentes eleitos inclusive. 


Nos próximos artigos, continuaremos em nosso esforço para entender a trajetória política de José Manuel Zelaya Rosales e a crise política que se abateu sobre Honduras.         


Texto concluído em 27 de novembro de 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

(II)Honduras contra o Mundo: para que serve uma Constituição do lado de baixo do Equador?


O jurista Dalmo de Abreu Dallari, professor da Faculdade de Direito da USP, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 03 de outubro do corrente ano, ressaltou que: “No Estado democrático de Direito, o respeito às normas constitucionais é absolutamente necessário, e não deverá ser tolerada qualquer tentativa de fazer o que elas proíbem, pois, muito mais do que simples aparato formal, a Constituição autêntica é o conjunto das normas fundamentais do sistema político e jurídico, e obedecê-la integralmente é requisito indispensável para que o sistema seja democrático”.

Se o professor Dalmo Dallari descreveu à perfeição a regra constitucional básica que rege o sistema político e jurídico prevalecente no mundo democrático ocidental, então o cidadão hondurenho José Manuel Zelaya Rosales, desde a sua exposição como potencial candidato à presidência, em 2003, até a sua deposição como presidente eleito, em 2009, pretendeu colocar-se acima da lei, como um cidadão diferenciado dos demais, com o direito de sobrepor-se até às normas constitucionais, em especial no que ela dita com respeito à duração do mandato presidencial e ao rito para que se estabeleçam consultas populares pela via de plebiscitos ou referendos, instrumentos de muito uso pelos políticos adeptos do bolivarianismo chavista.

Eleito pela primeira vez em 1998, Hugo Chávez convocou uma Assembléia Constituinte, em 2000, que o ratificou no cargo por mais seis anos. Em dezembro de 2006, já famoso por defender o bolivarianismo, ideologia que prega um socialismo nacionalista sulamericano, o Presidente venezuelano conseguiu se reeleger para um período adicional que se conclui em fevereiro de 2013.

E em janeiro de 2009 Hugo Chávez modificou, mais uma vez, o texto constitucional venezuelano, aprovando uma proposta de emenda, com cinco artigos, que permitirá a reeleição ilimitada para todos os cargos de eleição popular na Venezuela, o que, é óbvio, inclui o mandato presidencial.

Há onze anos no poder, com o direito de reeleger-se por tempo ilimitado, Hugo Chávez conseguiu exportar, para alguns dos países vizinhos, o modelo bolivarianista de entrega do Executivo a grupos políticos que se instalam na máquina pública e, com as chaves do Tesouro nacional nas mãos, manipulam a opinião pública, cooptam parte dos empresários e da imprensa e terminam por capturar o apoio de vastas camadas sociais de despossuídos, distribuindo-lhes migalhas do excedente econômico nacional.

José Manuel Zelaya Rosales, presidente eleito de Honduras, em novembro de 2005, apoiado por um grupo de assessores que vinculou à Presidência da República, como Ministros de Estado e assessores diretos, foi um dos vizinhos que se encantou com a proposta de um Estado bolivariano hondurenho, de preferência associado à Alternativa Bolivariana para a América Latina e Caribe, a ALBA de Hugo Chávez.

Como sabemos, Hugo Chávez criou a ALBA num esforço para, na condição de líder regional, se contrapor à Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, uma proposta estratégica norteamericana de alcance continental com objetivos políticos, econômicos e militares de longo prazo.

Os Estados Unidos acreditavam que, criada a ALCA com o total apoio dos Estados centro e sulamericanos, assim se garantiria o apoio regional em suas disputas com outras potências, tais como a Rússia, a União Européia e a China.

A ALCA, como projeto político, também buscava garantir o apoio dos Estados americanos à luta dos EUA contra o que conceituava como “Estados renegados”, entre os quais incluía o Iraque, a Líbia e a Síria; e para as suas estratégias específicas de combate às “novas ameaças ao mundo livre”, como o narcotráfico, o terrorismo e as migrações Sul-Norte e Leste-Oeste.

Porém, a ALCA não conseguiu vingar, e um dos seus objetivos políticos, com certeza, seria tentar a consolidação e a promoção do que a política externa norteamericana define como regras de boa governabilidade (good governance, em inglês) e da democracia formal, como a reeleição de dirigentes simpáticos a essa estratégia norteamericana.

Alijado o projeto da ALCA do palco político americano, abriu-se a oportunidade para que Hugo Chávez criasse e tentasse consolidar a ALBA, num contexto ideologizado pelo bolivarianismo.

E Hugo Chávez passou, então, a tentar cooptar os governantes centro e sulamericanos para o seu projeto bolivariano de governabilidade e democracia formal, agora submetidos às suas próprias regras. E em Honduras, Hugo Chávez encontrou um aliado instalado legalmente no poder, José Manuel Zelaya Rosales, que inclusive o convidou para uma visita ao país, acompanhado de outro vitorioso pupilo, Evo Morales, o presidente da Bolívia.



Na visita a Honduras, Hugo Chávez fez bom uso da sua retórica bolivariana, agredindo o povo e o empresariado local, exortando-os a serem nacionalistas, a serem menos “pitiyankis”, isto é, menos aliados dos EUA e mais “pitimelistas”, ou seja, mais favoráveis a José Manuel Zelaya Rosales, que tem o apelido de Mel.

A partir da visita do grande líder latinoamericano a Honduras, o Presidente Mel acelerou seu projeto de convocar uma constituinte via plebiscito, mas desrespeitando o Artigo 5º da Constituição vigente, passando por cima do Congresso Nacional, da Corte Suprema de Justiça, do Tribunal Supremo Eleitoral e das Forças Armadas.

O Presidente José Manuel Zelaya Rosales e seus assessores mais íntimos acreditaram que seria muito fácil repetir, em Honduras, os procedimentos que modificaram o texto constitucional venezuelano para permitir a reeleição ilimitada de Hugo Chávez, e que não haveria resistência da classe política do país ao seu projeto particular de convocar uma constituinte, formada por integrantes de sua inteira confiança, aos quais incumbiria de eliminar as cláusulas pétreas que impediam o retorno de caudilhos ao poder.

Vamos, então, a um breve resumo da trajetória política do presidente que levou Honduras, uma nação pouco conhecida pelo resto do mundo, a se tornar um dos nomes mais repetidos na imprensa internacional, conversa obrigatória nos círculos diplomáticos, assunto para discussões entre os povos do continente, especialmente entre aqueles ameaçados pelo populismo chavista.

Breve resumo da trajetória política de José Manuel Zelaya Rosales







1. O candidato populista


  • No dia 1º de maio de 2003, em meio às comemorações pelo dia do trabalho, o populacho reunido por sindicatos de professores e outros movimentos populares, investiu contra e derrubou a grade, recém construída, que protegia as instalações do Congresso Nacional hondurenho.

  • Zelaya, já em plena campanha para a construção de uma imagem política, explorou o fato e colocou a culpa pelo incidente nas autoridades que construiram a grade de proteção, e não nos vandalos que a derrubaram.
  • No entanto, em conversa com jornalistas, justificou sua declaração favorável ao ato de vandalismo como necessária para conseguir o apoio político dos grupos que o praticaram.
  • O analista político Juan Ramón Martinez, em artigo publicado no Diário de La Tribuna, editado em Tegucigalpa, em 15 de junho de 2003, mostrou que Zelaya, à época um político vinculado ao Partido Liberal, oriundo de uma tradicional família de ruralistas que combatiam duramente, e perseguiam, os movimentos populares e de trabalhadores, não contava com a simpatia ou o respaldo dos grupos sindicais e movimentos sociais que operaram no tumulto que levou á queda da grade que protegia o Congresso Nacional, pois estes, na ocasião, o vaiaram e zombaram do seu repentino e oportunista apoio.
  • Zelaya também investiu contra a proposta de alguns deputados hondurenhos de construir um espaço para se honrar e defender a Constituição da República, para tanto destinando instalações no piso inferior do Congresso Nacional, o que, segundo ele, representava um crime contra os interesses populares.
  • Além de denunciar que, para se tornar conhecido, Zelaya Rosales explorava situações inusitadas, com o propósito de se consolidar como uma grande alternativa política nacional, a imprensa criticava não só a ele, Mel, mais também a Porfírio Lobo, outro candidato presidencial, que destacavam e exaltavam, em seus pronunciamentos, suas origens ruralistas, tais como saber plantar e colher milho, cavalgar e domar cavalos chucros, laçar vacas e bois assustados no pasto, atividades que os demais candidatos, urbanos por excelência, não dominavam. 
  • Para concluir o relato de apenas algumas das ações oportunistas construídas por José Manuel Zelaya Rosales, em sua caminhada para empalmar o poder em Honduras, deve ser ressaltado que ele prometia o Céu e a Terra ao eleitorado, como um grande aumento nos valores do salário mínimo, além de combustíveis importados a preços subsidiados pelo governo, ao mesmo tempo em que uma pesquisa o apontava como o homem com o mais alto índice de popularidade política de toda a história moderna do país. 
  • Porém, a imprensa local denunciou que o gerente da empresa responsável pela referida pesquisa exercia, ao mesmo tempo, a função de consul de Honduras na República da Costa Rica, o que caracterizava um claro conflito de interesses públicos.
  • No dia 29 de novembro de 2005, Zelaya foi eleito presidente da República de Honduras, na esteira de inusitadas declarações oportunistas, ao longo de quatro anos, acompanhadas por sua crítica permanente às instituições hondurenhas, ao sistema eleitoral do país e ao desempenho político dos que se elegiam pelo sufrágio universal, inclusive a companheiros que prestaram reconhecida contribuição política como governantes e ao próprio partido que lhe emprestou a legenda, o Partido Liberal.
  • E assim, de 2003 a 2005, José Manuel Zelaya Rosales, criticando sem parar o texto constitucional e o sistema eleitoral hondurenho, em especial denunciando a forma misteriosa de funcionamento do poder, de decisões secretas tomadas em círculos íntimos, afirmando que o povo elegia os governantes mas outros exerciam o poder, que os governantes eleitos não eram escolhidos pela pureza do voto, que as eleições hondurenhas constituíam uma fraude burguesa e, portanto, eram produto de uma fraude eleitoral, chegou à Presidência da República hondurenha.
  • Mesmo falando das impurezas do sistema eleitoral, Zelaya foi eleito por este mesmo sistema, e aceitou o resultado sem reclamar: apenas 50% do eleitorado compareceu às urnas em novembro de 2005, e deste total, somente 23% votou no candidato liberal.
  • “De forma estranha”, segundo os analistas locais, os resultados dessa eleição nunca foram oficializados, mas foram validados, depois de trinta dias de espera, pelo Presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, Arístides Mejia – posteriormente nomeado Ministro da Defesa do governo de José Manuel Zelaya Rosales, que se iniciou, como manda a Constituição (conforme o Artigo 237), no dia 27 de janeiro de 2006. 
  • O resultado dessas eleições foi também reconhecido pelo observador da OEA, Frank Almaquer, um ex-diretor do Corpo da Paz em Tegucigalpa e ex-embaixador dos Estados Unidos em Honduras, o que, mesmo distanciado no tempo, não deixa de nos lembrar as descrições de O. Henry, em Cabbages and Kings, sobre o poder de interferência dos EUA nos assuntos internos de uma República de Bananas. Ou seja, o país mais interessado nas eleições hondurenhas, defendendo seus próprios interesses políticos, diplomáticos e militares no continente americano, ratificou o “estranho” resultado eleitoral que entregou as rédeas do Poder Executivo a José Manuel Zelaya Rosales.

Esse texto foi concluído em 20 de novembro de 2009

(I)Honduras contra o Mundo: para que serve uma Constituição do lado de baixo do Equador?

Pequeno país da América Central, com sete milhões de habitantes, ocupando um território de 112.482 km², um pouco maior do que o do Estado de Santa Catarina, banhado pelos oceanos Atlântico e Pacífico, Honduras faz fronteira com as Repúblicas da Guatemala, El Salvador e Nicarágua.

A República de Honduras recebeu o apelido de República de Bananas, ou República Bananeira, do escritor norteamericano Olivier Henry, pseudônimo de William Sidney Porter.

Acusado de um desfalque num Banco de Austin, no Texas, o escritor norteamericano mudou o “i” de Sidney para “y”, passando a assinar-se Sydney, William Sydney Porter e fugiu para New Orleans e, em seguida, para Honduras, onde permaneceu por cerca de três anos, até retornar aos Estados Unidos, entregando-se à polícia e cumprindo três dos cinco anos a que foi condenado .

Com certeza, Olivier Henry, que depois abreviou o pseudônimo para O. Henry, informou-se muito bem sobre a atribulada história centroamericana de disputa pelo poder local, entre caudilhos, civis ou militares, além de conhecer com segurança sobre o poder exercido pelo seu próprio país com relação aos demais países do continente americano, à época, numa disputa aberta pela liderança na região e contra a consolidada dominação econômica e influência cultural dos países europeus.

Em Honduras, aprendeu, na prática, sobre o total domínio exercido pela United Fruit Company sobre a economia local, suas oligarquias e o expropriado povo hondurenho, em especial no decorrer do século XIX e início do XX.

Desse aprendizado surgiu a inspiração para escrever uma coletânea de contos, Cabbages and Kings (numa tradução livre, De Repolhos e de Reis), publicada em 1904, sua única obra que se assemelha a uma novela, segundo os editores do Projeto Gutenberg (oferece ebooks gratuitamente): dezoito contos, os quais, lidos em sequência, mostram o cotidiano das intrigas políticas arranjadas pelos nativos e pelos estrangeiros que habitam um país imaginário, localizado na América Central, que ele denomina de República de Bananas: politicamente instável, dominado e dirigido por uma pequena, rica e corrupta elite, dependente dos negócios agrícolas realizados por empresas locais com grandes empresas norteamericanas.

Assim, na análise política e jornalística mundial, a expressão República de Bananas ou República Bananeira consagrou-se como definidora de um país atrasado e dominado por governos corruptos e ditatoriais, e até no Brasil dos governos militares o chanceler Azeredo da Silveira vivia repetindo: “O Brasil não pode dar a impressão de que é uma Honduras”.

Hoje, Honduras, o provável país imaginário criado por O. Henry, enfrenta uma situação de absoluto isolamento internacional, em especial no plano do Continente Americano, graças à sua desimportância geopolítica na esfera de influência dos países que dominam o cenário político e a economia mundiais e ao pleno desrespeito desses mesmos países e das instituições internacionais, como a ONU e a OEA, que podem interferir em crises políticas como a que enfrenta aquele pequeno país.

O Brasil, que ensaia inserir-se como potência mundial, inclusive postulando e negociando a ocupação de um assento definitivo no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, aproveitando-se corretamente da sua atual posição de destaque no cenário econômico internacional que favorece, sem sombra de dúvidas, as declarações políticas do seu chefe de Estado e de governo, também optou por intervir nos assuntos internos de Honduras e vem contribuindo para o total isolamento internacional daquele pequeno país caribenho, sem sequer se dar ao trabalho de pesquisar ou ouvir, com respeito, os políticos hondurenhos sobre a história e a realidade política do país, pois, para isso, dispõe de diplomatas acreditados que respondem pela representação brasileira em Tegucigalpa.

Historicamente ligada aos Estados Unidos, e dele dependente economicamente, Honduras, ao mesmo tempo, enfrenta, por exemplo, sérios problemas de fronteira com a Nicarágua e El Salvador, países pelos quais sente-se ameaçada. Pelo primeiro deles, de invasão territorial, e pelo segundo, de ceder o seu direito de aproveitamento conjunto das riquezas submarinas no Golfo de Fonseca, mesmo após decisão jurídica internacional que a favoreceu.

E, de repente, surge um governante, José Manuel Zelaya Rosales, que, ao final de um fracassado mandato presidencial de quatro anos ( limite estabelecido pela Constituição de Honduras , vigente desde 1982, com cláusula pétrea que proíbe qualquer tentativa de introdução do mecanismo da reeleição ), inspirado nos exemplos e nos princípios bolivarianos do Presidente venezuelano Hugo Chávez, decidiu-se por implantar em território hondurenho o continuísmo presidencialista que permite a um mesmo grupo político, manipulando procedimentos democráticos, empalmar o poder e nele permanecer por décadas infindas.

Entretanto, o maior empecilho aos planos bolivarianos de José Manuel Zelaya Rosales é o texto da Constituição de Honduras, que festeja 27 anos de continuidade eleitoral, sendo a mais longeva e a mais hermética das 13 constituições que balizaram a vida republicana do país, o que lhe permitiu eleger a sete governantes civis, e dispõe de um conjunto de cláusulas pétreas destinadas a impedir o reavivamento do tradicional caudilhismo presidencial hondurenho, além de dotar o poder legislativo de prerrogativas quanto ao poder de nomeação das mais altas autoridades judiciárias, retirando-se, assim, das mãos presidenciais, o poder político de barganhar com possíveis interessados em suas nomeações como dirigentes das instituições no âmbito desse fundamental e importantíssimo poder republicano.

Além de fixar o mandato presidencial em quatro anos e impedir o voluntarismo continuista, a Constituição de Honduras também fixa em quatro anos o mandato do Procurador Geral da República e dos magistrados da Corte Suprema de Justiça, todos eleitos por dois terços dos 128 congressistas , após escolha dentre uma listagem com pelo menos três candidatos, apontados por uma Junta de Indicação que é formada por : um representante da Corte Suprema de Justiça, um representante da Ordem dos Advogados, um representante da Comissão Nacional de Direitos Humanos, um representante dos professores das Faculdades de Ciências Jurídicas, um representante das organizações da sociedade civil e, por fim, um representante das Confederações de Trabalhadores.

Enfim, a Constituição de Honduras, vigente desde 1982, possui cláusulas pétreas, como os Artigos 373 e 374, que impedem e condenam, legalmente, a evolução de possíveis voluntarismos continuistas, ou mesmo tentativas de golpismo travestidas de democracia, que possam ser sonhados por presidentes eleitos, grupos políticos ou autoridades responsáveis pela direção temporária das principais instituições decisórias nacionais, Forças Armadas inclusive.

No entanto, a Carta Magna de Honduras dispõe de importante dispositivo que aprova a realização de referendos e plebiscitos, e fecha o circuito destes artigos pétreos destinados a impedir manobras de presidentes, grupos políticos ou autoridades que defendam o continuísmo: o texto do Artigo 5 da Constituição, modificado por Decreto do Poder Legislativo, de 27 de outubro de 2004, com validade constitucional a partir de 12 de fevereiro do mesmo ano, o mais longo artigo da Carta Magna hondurenha.

Este artigo quinto da Constituição de Honduras estabelece o rito legal para se requerer a realização de referendos ou plebiscitos: petições com essas finalidades devem e podem ser encaminhadas por iniciativa de pelo menos dez congressistas, ou pelo Presidente da República e, por fim, por iniciativa popular contendo pelo menos 6% (seis por cento) de assinaturas de cidadãos eleitores. O Congresso Nacional, a quem o ordenamento constitucional delegou competência, deve conhecê-las, discutí-las e aprová-las ou rejeitá-las, por dois terços dos votos congressuais, tudo com amparo nos Artigos 373 e 374 da Constituição de 1982.

E segue o Artigo 5 da Constituição de Honduras determinando que compete ao Congresso Nacional , aprovada uma petição de realização de plebiscito ou referendo, instruir o Tribunal Supremo Eleitoral para que convoque os cidadãos para o cumprimento desse direito eleitoral, mecanismo que, em última análise, objetiva estender o conceito de cidadania participativa em assuntos de importância fundamental para o fortalecimento da democracia na vida nacional hondurenha.

O mais longo artigo constitucional da Carta Magna de 1982, o Artigo 5, não deixa de lembrar aos cidadãos hondurenhos, José Manuel Zelaya Rosales incluso, e , ainda, atentando-se para o conceito de soberania, ao resto das nações que adotam o Estado de Direito como marco ordenador de suas relações republicanas e cidadãs, que a reforma dos Artigos 373 e 374 da Constituição de 1982 não podem ser objeto de consulta pela via do plebiscito ou do referendo. Também não podem constituir-se objeto de tais tipos de consulta popular, segundo o mesmo Artigo 5, os assuntos relacionados com questões tributárias, crédito público, anistia, moeda nacional, orçamento, tratados e convenções internacionais e conquistas sociais.

O Artigo 373 determina que a reforma da Constituição vigente só poderá ser decretada pelo Congresso Nacional, em sessões ordinárias, com dois terços de votos da totalidade de seus membros, e o decreto de reforma deverá assinalar o artigo ou artigos que serão reformados, o que deverá ser ratificado pela próxima legislatura, por igual número de votos, para que, finalmente, passe a ter validade e entre em vigência.

E o que proíbe o referido Artigo 374 da Constituição de Honduras? Este artigo apenas reafirma o que já está consolidado pelos Artigos 4 e seu inciso I, que define a forma de governo e a obrigatoriedade da alternabilidade no exercício da Presidência da República; pelos Artigos 9 a 14, que estabelecem os limites do território nacional; pelo Artigo 273, que fixa o período de duração do mandato presidencial; pelo Artigo 239 e seu inciso I, que ditam o impedimento da reeleição do presidente em exercício, eleito ou seu substituto por qualquer espaço de tempo, e, ainda, o tipo de punição para aqueles cidadãos, presidentes ou não, que proponham a adoção do mecanismo do continuísmo eleitoral.

Segundo sua Constituição, Honduras dispõe também de um sistema eleitoral independente, formado por três magistrados e um suplente, que integram o colegiado do Tribunal Supremo Eleitoral e são indicados por petição da maioria dos partidos políticos, não podendo ser filiados a qualquer um deles, e que são eleitos pelo voto afirmativo de dois terços da totalidade dos membros do Congresso Nacional, por um período de cinco anos, podendo ser reeleitos por mais um período, conforme o Artigo 52 da Constituição.

A independência do sistema eleitoral de Honduras o torna um verdadeiro poder político, que pode ser renovado a cada cinco anos, a pedido dos próprios partidos políticos, bastando que acionem o Congresso Nacional para isso.

Quanto aos direitos e garantias individuais, a Constituição de Honduras abriga importantíssimos dispositivos constitucionais: o Artigo 101, em seu inciso II, determina que “O Estado não autorizará a extradição de réus por delitos políticos e comuns anexos”; e o Artigo 102 o complementa, decretando que “Nenhum hondurenho poderá ser extraditado nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro”.

No entanto, o Artigo 42, inciso 5, declara que “A qualidade de cidadão se perde: Por incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do Presidente da República”, quando, de acordo com o parágrafo único desse mesmo artigo, houver “... prévia sentença condenatória ditada pelos tribunais competentes”.

Mesmo assim, os Artigos 89 e 90 são bastante claros: “Toda pessoa é inocente enquanto não se tenha declarado sua responsabilidade por autoridade competente” e “Ninguém pode ser julgado senão por juiz ou tribunal competente segundo as formalidades, direitos e garantias que a Lei estabelece”, ou seja, a Constituição de Honduras garante, como pede o Direito Internacional, que aqueles cidadãos acusados por qualquer tipo penal sejam submetidos ao devido processo legal.

Enfim, se queremos entender o que realmente ocorreu em Honduras no dia 28 de junho do ano da graça de 2009, quando o Presidente da República foi deposto e expulso do país pelas Forças Armadas, não podemos nos restringir apenas às palavras e depoimentos de José Manuel Zelaya Rosales, o presidente deposto, ou às de seus seguidores, ministros e auxiliares diretos ou militantes sindicalizados.

Assim, apoiados na leitura e interpretação do processo histórico do país, no expediente judicial aberto pela justiça hondurenha contra o cidadão José Manuel Zelaya Rosales, na Constituição de Honduras de 1982, em quase uma centena de artigos publicados em jornais locais, que analisam a vida política nacional e o desempenho do presidente deposto, entre 2003 e 2009, e no intenso noticiário jornalístico veiculado no mundo inteiro desde o início de tão importante crise política internacional, tentaremos apresentar a nossa versão do caso Honduras contra Zelaya.

Para a maioria dos observadores interessados nesta crise institucional hondurenha, um típico golpe de Estado sulamericano, para outros, um raro e democrático contragolpe de Estado, nas terras do lado de baixo do Equador, fundamentado legalmente em texto constitucional.

(Texto elaborado por José Everaldo Ramalho e concluído em 09/11/2009)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Santinhos de pau oco e a Constituição de Honduras

A expressão colonial brasileira “santo de pau oco”  pode explicar com clareza o comportamento dos políticos de esquerda - brasileiros, bolivianos, venezuelanos, equatorianos e nicaraguenses, et cetera, que se envolvem na defesa do mandato do presidente hondurenho José Manuel Zelaya, visto que tal expressão significa indivíduo  sonso ou fingido e origina-se de uma imagem de santo esculpida em madeira e, engenhosamente, oca : “por fora, a pureza religiosa ; por dentro, a pecaminosa contravenção” (Reinaldo  Pimenta, in “A Casa da Mãe Joana”, 2002), pois servia para esconder e transportar o ouro sonegado ao sistema tributário que sustentava a Coroa Portuguesa.

Hugo Chávez e companheiros esforçaram-se para defender José Manuel Zelaya em sua tentativa de transgressão do Artigo 239 da Constituição de Honduras, cuja transcrição se faz necessária para que os leitores,  a imprensa e os políticos brasileiros se conscientizem do texto soberano hondurenho no que diz respeito à questão da possibilidade de reeleição presidencial naquele país.  

Vamos ao texto em referência:

Articulo 239 – El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser Presidente o Designado.

El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercício de toda función publica.

   Falantes de língua portuguesa nem precisam traduzir o texto em espanhol para bem compreendê-lo: a Constituição de Honduras proíbe, expressamente, o mecanismo da reeleição, e qualquer um, presidente eleito ou não, que tente propor a modificação do texto constitucional, será banido de toda e qualquer função pública, por dez anos. Mais claro, impossível.
   Nesse sentido, o texto constitucional hondurenho não pode, com respaldo no direito internacional e apoiado nos conceitos de soberania e supranacionalidade, ser criticado nem pelos chavistas e nem pelos petistas, tampouco pela ONU e demais organizações não governamentais. Essas últimas, pelo menos, têm  a obrigação de reconhecê-lo, face à sua legitimidade e vigência legal no contexto das nações independentes e mundialmente reconhecidas, como país que dispõe de um território, um povo, um idioma e uma Carta Constitucional. Pior ainda: o Mercosul, um frágil projeto de integração regional que caminha a passos de cágado, ainda não incorporou Honduras como país membro, sequer como parceiro, que é o caso da Venezuela.

Por falar em Venezuela, a mídia televisiva mostra, diariamente, como o chavismo utiliza-se do exercício  do seu direito de soberania, delegada pelo povo por via do sufrágio universal, para tentar impor desapropriações de propriedades particulares ou reformas do ensino para enquadrar os seus cidadãos na visão de mundo que denomina de bolivarianismo, e sem admitir interferências externas de quaisquer organizações ou instituições internacionais. Além disso, os chavistas acham-se no direito de criticar a decisão interna soberana dos poderes Judiciário e Legislativo hondurenhos, de defesa da sua Constituição, alegando a vigência da supranacionalidade amparada em acordos destinados à defesa dos regimes democráticos de governo no território sulamericano, sob o manto da OEA e do Mercosul. Ora, apenas o bloco regional da União Europeia, pela prática  de instituições em pleno funcionamento, inclusive da moeda, e a vigência de um direito comunitário reconhecido no plano mundial, tem o legítimo direito de evocar o princípio da supranacionalidade.

O que o ex-presidente Manuel Zelaya pretendeu, seguindo a cartilha bolivariana chavista, foi convocar uma consulta popular que legitimasse a modificação constitucional para permitir a sua reeleição, ou seja, instituir em Honduras o padrão moderno sul-americano de golpe de Estado, pois, tão logo eleito, o cidadão empossado se  apressa em dar-se o direito de mudar o texto constitucional que jurou defender, para permitir-se uma longa  permanência no poder, dele e dos grupos e partidos políticos que o apoiem, por décadas, inclusive desprezando o instrumento da reeleição por uma só vez, até que o povo  deles se canse, como aconteceu no Peru, com Alberto Fujimori, hoje na cadeia, após anos seguidos de empulhação,  parlapatanice e assalto aos cofres públicos.

Liderando essa desastrada campanha, o chavismo pretende impor a adoção do presidencialismo majestático e tiranizante de longo prazo, consolidando, assim, o padrão bolivariano de democracia do século XXI no espaço geográfico sulamericano.

Alega-se que os tempos que vivemos são outros, que “novas instituições” surgiram no berço esplêndido da América do Sul, como a Unasul e o “novo” parlamento regional que Hugo Chávez pretende implantar em Cochabamba, na Bolívia, claro que sob a  sua iluminada orientação ideológica, à revelia  ou em contraparte ao Parlamento do Mercosul, que luta com muita dificuldade para se consolidar e ainda respira sob a tutela dos Poderes Executivos dos Estados Partes fundadores do bloco. 

Logo, ainda que assim não entendam os militontos de plantão (apodo criado por Frei Betto, in “A Mosca Azul”, 2008), a deposição legal de Manuel Zelaya tem fundamento na Constituição de Honduras e representa, de modo transparente, a reação dos Poderes Judiciário e Legislativo daquele país, ambos com  a obrigação de defender a sua Constituição, que convocaram as suas Forças Armadas para fazer cumprir a Lei Maior e destituir um presidente desrespeitador do  próprio texto constitucional que lhe deu posse, levantando-se num legítimo contragolpe de Estado.

O mundo ocidental foi abalado pela destituição da monarquia em 1789, pela Revolução Francesa, geradora dos universais Direitos do Homem, e pela Revolução Norte-americana de 1776, que legitimou o  ideal republicano do revezamento presidencial, em 1787, no curto prazo, à sombra de uma sóbria Carta Magna, mas a moderna democracia sul-americana está sendo moldada não por princípios democráticos legitimadores de governos efetivamente republicanos, e, sim, por uma visão de mundo autoritária, forjada por lideranças oportunistas de uma esquerda jurássica, arrastada pelo Coronel Hugo Chávez e respaldada pelo ditador Fidel Castro (vide “Sombras do Paraíso”, 1994, de Antonio Rangel Bandeira).

Por ironia e contradição, enquanto Fidel Castro, depois de meio século no poder, autoriza o irmão, Raul Castro, a liderar a modernização e a abertura da economia cubana ao investimento estrangeiro, “por necessidade e desespero” (conforme Pedro Juan Gutiérrez, in “Trilogia Suja de Havana”, 2009), Hugo Chávez fecha, cada vez mais, a economia venezuelana aos investimentos capitalistas, internos ou externos.

Infelizmente, a América do Sul, e em especial o Brasil, caso se deixe levar pelo ultrapassado canto de sereia bolivariano, vai se preocupar com os passeios da Quarta Frota  norte-americana nas águas do Atlântico Sul,  ou com as bases militares cedidas pela Colômbia ao camarada Barack Obama, ao invés de se concentrar na criação de mecanismos de defesa contra o narcotráfico fronteiriço liderado pelas FARC, organização que bem conhece o Fernandinho Beira-Mar, ou, pegando mais leve, se preocupará em negociar o oferecimento de blocos do Pré-Sal aos chineses, cuja economia, em crescimento galopante, necessita  com urgência de novas fontes de suprimento de energia, essas, sim, tão carentes de uma Quarta Frota brasileira para bem protegê-las, e jamais tentará reforçar o pedido de um assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

Enfim,  concordamos que são muitos os perigos e as contradições que cercam a construção da moderna nação brasileira, mas pode-se afirmar que, fora do revezamento político dos governantes no curto prazo, previstos pelos sistemas de governo democráticos e pela vigência do Estado Democrático de Direito que, civilizadamente, implica a aceitação do conceito de soberania com suas devidas limitações, o bolivarianismo, se vingar no espaço geográfico brasileiro, com certeza atrasará a construção não só de uma uma próspera nação brasileira, mas de todo o projeto mercosulino, ainda que o “modelito” possa servir para encher as cestas básicas dos despossuídos com migalhas e as bolsas dos espertalhões da política e daqueles empresários que os apoiam com milhões de dólares e reais.

Atenção, pois, os santinhos de pau oco sul-americanos, pois os povos que habitam o nosso continente merecem que os compromissos políticos dos governantes, de preferência eleitos periodicamente, se concretizem em mais empregos, mais educação e saúde pública, mais serviços públicos eficientes e menos marketing gerador de falsos estadistas e seus incompetentes ideólogos e administradores dos negócios públicos em proveito próprio. 

A propósito, alguém tem dúvida de que Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e outros mais cotados no atual plano político latino-americano, no médio prazo, não serão repudiados pelas populações de seus países, como o foi Alberto Fujimori?

Vida longa, pois, à Constituição de Honduras.

Texto escrito em 24 de agosto de 2009