segunda-feira, 23 de novembro de 2009

(II)Honduras contra o Mundo: para que serve uma Constituição do lado de baixo do Equador?


O jurista Dalmo de Abreu Dallari, professor da Faculdade de Direito da USP, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 03 de outubro do corrente ano, ressaltou que: “No Estado democrático de Direito, o respeito às normas constitucionais é absolutamente necessário, e não deverá ser tolerada qualquer tentativa de fazer o que elas proíbem, pois, muito mais do que simples aparato formal, a Constituição autêntica é o conjunto das normas fundamentais do sistema político e jurídico, e obedecê-la integralmente é requisito indispensável para que o sistema seja democrático”.

Se o professor Dalmo Dallari descreveu à perfeição a regra constitucional básica que rege o sistema político e jurídico prevalecente no mundo democrático ocidental, então o cidadão hondurenho José Manuel Zelaya Rosales, desde a sua exposição como potencial candidato à presidência, em 2003, até a sua deposição como presidente eleito, em 2009, pretendeu colocar-se acima da lei, como um cidadão diferenciado dos demais, com o direito de sobrepor-se até às normas constitucionais, em especial no que ela dita com respeito à duração do mandato presidencial e ao rito para que se estabeleçam consultas populares pela via de plebiscitos ou referendos, instrumentos de muito uso pelos políticos adeptos do bolivarianismo chavista.

Eleito pela primeira vez em 1998, Hugo Chávez convocou uma Assembléia Constituinte, em 2000, que o ratificou no cargo por mais seis anos. Em dezembro de 2006, já famoso por defender o bolivarianismo, ideologia que prega um socialismo nacionalista sulamericano, o Presidente venezuelano conseguiu se reeleger para um período adicional que se conclui em fevereiro de 2013.

E em janeiro de 2009 Hugo Chávez modificou, mais uma vez, o texto constitucional venezuelano, aprovando uma proposta de emenda, com cinco artigos, que permitirá a reeleição ilimitada para todos os cargos de eleição popular na Venezuela, o que, é óbvio, inclui o mandato presidencial.

Há onze anos no poder, com o direito de reeleger-se por tempo ilimitado, Hugo Chávez conseguiu exportar, para alguns dos países vizinhos, o modelo bolivarianista de entrega do Executivo a grupos políticos que se instalam na máquina pública e, com as chaves do Tesouro nacional nas mãos, manipulam a opinião pública, cooptam parte dos empresários e da imprensa e terminam por capturar o apoio de vastas camadas sociais de despossuídos, distribuindo-lhes migalhas do excedente econômico nacional.

José Manuel Zelaya Rosales, presidente eleito de Honduras, em novembro de 2005, apoiado por um grupo de assessores que vinculou à Presidência da República, como Ministros de Estado e assessores diretos, foi um dos vizinhos que se encantou com a proposta de um Estado bolivariano hondurenho, de preferência associado à Alternativa Bolivariana para a América Latina e Caribe, a ALBA de Hugo Chávez.

Como sabemos, Hugo Chávez criou a ALBA num esforço para, na condição de líder regional, se contrapor à Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, uma proposta estratégica norteamericana de alcance continental com objetivos políticos, econômicos e militares de longo prazo.

Os Estados Unidos acreditavam que, criada a ALCA com o total apoio dos Estados centro e sulamericanos, assim se garantiria o apoio regional em suas disputas com outras potências, tais como a Rússia, a União Européia e a China.

A ALCA, como projeto político, também buscava garantir o apoio dos Estados americanos à luta dos EUA contra o que conceituava como “Estados renegados”, entre os quais incluía o Iraque, a Líbia e a Síria; e para as suas estratégias específicas de combate às “novas ameaças ao mundo livre”, como o narcotráfico, o terrorismo e as migrações Sul-Norte e Leste-Oeste.

Porém, a ALCA não conseguiu vingar, e um dos seus objetivos políticos, com certeza, seria tentar a consolidação e a promoção do que a política externa norteamericana define como regras de boa governabilidade (good governance, em inglês) e da democracia formal, como a reeleição de dirigentes simpáticos a essa estratégia norteamericana.

Alijado o projeto da ALCA do palco político americano, abriu-se a oportunidade para que Hugo Chávez criasse e tentasse consolidar a ALBA, num contexto ideologizado pelo bolivarianismo.

E Hugo Chávez passou, então, a tentar cooptar os governantes centro e sulamericanos para o seu projeto bolivariano de governabilidade e democracia formal, agora submetidos às suas próprias regras. E em Honduras, Hugo Chávez encontrou um aliado instalado legalmente no poder, José Manuel Zelaya Rosales, que inclusive o convidou para uma visita ao país, acompanhado de outro vitorioso pupilo, Evo Morales, o presidente da Bolívia.



Na visita a Honduras, Hugo Chávez fez bom uso da sua retórica bolivariana, agredindo o povo e o empresariado local, exortando-os a serem nacionalistas, a serem menos “pitiyankis”, isto é, menos aliados dos EUA e mais “pitimelistas”, ou seja, mais favoráveis a José Manuel Zelaya Rosales, que tem o apelido de Mel.

A partir da visita do grande líder latinoamericano a Honduras, o Presidente Mel acelerou seu projeto de convocar uma constituinte via plebiscito, mas desrespeitando o Artigo 5º da Constituição vigente, passando por cima do Congresso Nacional, da Corte Suprema de Justiça, do Tribunal Supremo Eleitoral e das Forças Armadas.

O Presidente José Manuel Zelaya Rosales e seus assessores mais íntimos acreditaram que seria muito fácil repetir, em Honduras, os procedimentos que modificaram o texto constitucional venezuelano para permitir a reeleição ilimitada de Hugo Chávez, e que não haveria resistência da classe política do país ao seu projeto particular de convocar uma constituinte, formada por integrantes de sua inteira confiança, aos quais incumbiria de eliminar as cláusulas pétreas que impediam o retorno de caudilhos ao poder.

Vamos, então, a um breve resumo da trajetória política do presidente que levou Honduras, uma nação pouco conhecida pelo resto do mundo, a se tornar um dos nomes mais repetidos na imprensa internacional, conversa obrigatória nos círculos diplomáticos, assunto para discussões entre os povos do continente, especialmente entre aqueles ameaçados pelo populismo chavista.

Breve resumo da trajetória política de José Manuel Zelaya Rosales







1. O candidato populista


  • No dia 1º de maio de 2003, em meio às comemorações pelo dia do trabalho, o populacho reunido por sindicatos de professores e outros movimentos populares, investiu contra e derrubou a grade, recém construída, que protegia as instalações do Congresso Nacional hondurenho.

  • Zelaya, já em plena campanha para a construção de uma imagem política, explorou o fato e colocou a culpa pelo incidente nas autoridades que construiram a grade de proteção, e não nos vandalos que a derrubaram.
  • No entanto, em conversa com jornalistas, justificou sua declaração favorável ao ato de vandalismo como necessária para conseguir o apoio político dos grupos que o praticaram.
  • O analista político Juan Ramón Martinez, em artigo publicado no Diário de La Tribuna, editado em Tegucigalpa, em 15 de junho de 2003, mostrou que Zelaya, à época um político vinculado ao Partido Liberal, oriundo de uma tradicional família de ruralistas que combatiam duramente, e perseguiam, os movimentos populares e de trabalhadores, não contava com a simpatia ou o respaldo dos grupos sindicais e movimentos sociais que operaram no tumulto que levou á queda da grade que protegia o Congresso Nacional, pois estes, na ocasião, o vaiaram e zombaram do seu repentino e oportunista apoio.
  • Zelaya também investiu contra a proposta de alguns deputados hondurenhos de construir um espaço para se honrar e defender a Constituição da República, para tanto destinando instalações no piso inferior do Congresso Nacional, o que, segundo ele, representava um crime contra os interesses populares.
  • Além de denunciar que, para se tornar conhecido, Zelaya Rosales explorava situações inusitadas, com o propósito de se consolidar como uma grande alternativa política nacional, a imprensa criticava não só a ele, Mel, mais também a Porfírio Lobo, outro candidato presidencial, que destacavam e exaltavam, em seus pronunciamentos, suas origens ruralistas, tais como saber plantar e colher milho, cavalgar e domar cavalos chucros, laçar vacas e bois assustados no pasto, atividades que os demais candidatos, urbanos por excelência, não dominavam. 
  • Para concluir o relato de apenas algumas das ações oportunistas construídas por José Manuel Zelaya Rosales, em sua caminhada para empalmar o poder em Honduras, deve ser ressaltado que ele prometia o Céu e a Terra ao eleitorado, como um grande aumento nos valores do salário mínimo, além de combustíveis importados a preços subsidiados pelo governo, ao mesmo tempo em que uma pesquisa o apontava como o homem com o mais alto índice de popularidade política de toda a história moderna do país. 
  • Porém, a imprensa local denunciou que o gerente da empresa responsável pela referida pesquisa exercia, ao mesmo tempo, a função de consul de Honduras na República da Costa Rica, o que caracterizava um claro conflito de interesses públicos.
  • No dia 29 de novembro de 2005, Zelaya foi eleito presidente da República de Honduras, na esteira de inusitadas declarações oportunistas, ao longo de quatro anos, acompanhadas por sua crítica permanente às instituições hondurenhas, ao sistema eleitoral do país e ao desempenho político dos que se elegiam pelo sufrágio universal, inclusive a companheiros que prestaram reconhecida contribuição política como governantes e ao próprio partido que lhe emprestou a legenda, o Partido Liberal.
  • E assim, de 2003 a 2005, José Manuel Zelaya Rosales, criticando sem parar o texto constitucional e o sistema eleitoral hondurenho, em especial denunciando a forma misteriosa de funcionamento do poder, de decisões secretas tomadas em círculos íntimos, afirmando que o povo elegia os governantes mas outros exerciam o poder, que os governantes eleitos não eram escolhidos pela pureza do voto, que as eleições hondurenhas constituíam uma fraude burguesa e, portanto, eram produto de uma fraude eleitoral, chegou à Presidência da República hondurenha.
  • Mesmo falando das impurezas do sistema eleitoral, Zelaya foi eleito por este mesmo sistema, e aceitou o resultado sem reclamar: apenas 50% do eleitorado compareceu às urnas em novembro de 2005, e deste total, somente 23% votou no candidato liberal.
  • “De forma estranha”, segundo os analistas locais, os resultados dessa eleição nunca foram oficializados, mas foram validados, depois de trinta dias de espera, pelo Presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, Arístides Mejia – posteriormente nomeado Ministro da Defesa do governo de José Manuel Zelaya Rosales, que se iniciou, como manda a Constituição (conforme o Artigo 237), no dia 27 de janeiro de 2006. 
  • O resultado dessas eleições foi também reconhecido pelo observador da OEA, Frank Almaquer, um ex-diretor do Corpo da Paz em Tegucigalpa e ex-embaixador dos Estados Unidos em Honduras, o que, mesmo distanciado no tempo, não deixa de nos lembrar as descrições de O. Henry, em Cabbages and Kings, sobre o poder de interferência dos EUA nos assuntos internos de uma República de Bananas. Ou seja, o país mais interessado nas eleições hondurenhas, defendendo seus próprios interesses políticos, diplomáticos e militares no continente americano, ratificou o “estranho” resultado eleitoral que entregou as rédeas do Poder Executivo a José Manuel Zelaya Rosales.

Esse texto foi concluído em 20 de novembro de 2009

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