sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Santinhos de pau oco e a Constituição de Honduras

A expressão colonial brasileira “santo de pau oco”  pode explicar com clareza o comportamento dos políticos de esquerda - brasileiros, bolivianos, venezuelanos, equatorianos e nicaraguenses, et cetera, que se envolvem na defesa do mandato do presidente hondurenho José Manuel Zelaya, visto que tal expressão significa indivíduo  sonso ou fingido e origina-se de uma imagem de santo esculpida em madeira e, engenhosamente, oca : “por fora, a pureza religiosa ; por dentro, a pecaminosa contravenção” (Reinaldo  Pimenta, in “A Casa da Mãe Joana”, 2002), pois servia para esconder e transportar o ouro sonegado ao sistema tributário que sustentava a Coroa Portuguesa.

Hugo Chávez e companheiros esforçaram-se para defender José Manuel Zelaya em sua tentativa de transgressão do Artigo 239 da Constituição de Honduras, cuja transcrição se faz necessária para que os leitores,  a imprensa e os políticos brasileiros se conscientizem do texto soberano hondurenho no que diz respeito à questão da possibilidade de reeleição presidencial naquele país.  

Vamos ao texto em referência:

Articulo 239 – El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser Presidente o Designado.

El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercício de toda función publica.

   Falantes de língua portuguesa nem precisam traduzir o texto em espanhol para bem compreendê-lo: a Constituição de Honduras proíbe, expressamente, o mecanismo da reeleição, e qualquer um, presidente eleito ou não, que tente propor a modificação do texto constitucional, será banido de toda e qualquer função pública, por dez anos. Mais claro, impossível.
   Nesse sentido, o texto constitucional hondurenho não pode, com respaldo no direito internacional e apoiado nos conceitos de soberania e supranacionalidade, ser criticado nem pelos chavistas e nem pelos petistas, tampouco pela ONU e demais organizações não governamentais. Essas últimas, pelo menos, têm  a obrigação de reconhecê-lo, face à sua legitimidade e vigência legal no contexto das nações independentes e mundialmente reconhecidas, como país que dispõe de um território, um povo, um idioma e uma Carta Constitucional. Pior ainda: o Mercosul, um frágil projeto de integração regional que caminha a passos de cágado, ainda não incorporou Honduras como país membro, sequer como parceiro, que é o caso da Venezuela.

Por falar em Venezuela, a mídia televisiva mostra, diariamente, como o chavismo utiliza-se do exercício  do seu direito de soberania, delegada pelo povo por via do sufrágio universal, para tentar impor desapropriações de propriedades particulares ou reformas do ensino para enquadrar os seus cidadãos na visão de mundo que denomina de bolivarianismo, e sem admitir interferências externas de quaisquer organizações ou instituições internacionais. Além disso, os chavistas acham-se no direito de criticar a decisão interna soberana dos poderes Judiciário e Legislativo hondurenhos, de defesa da sua Constituição, alegando a vigência da supranacionalidade amparada em acordos destinados à defesa dos regimes democráticos de governo no território sulamericano, sob o manto da OEA e do Mercosul. Ora, apenas o bloco regional da União Europeia, pela prática  de instituições em pleno funcionamento, inclusive da moeda, e a vigência de um direito comunitário reconhecido no plano mundial, tem o legítimo direito de evocar o princípio da supranacionalidade.

O que o ex-presidente Manuel Zelaya pretendeu, seguindo a cartilha bolivariana chavista, foi convocar uma consulta popular que legitimasse a modificação constitucional para permitir a sua reeleição, ou seja, instituir em Honduras o padrão moderno sul-americano de golpe de Estado, pois, tão logo eleito, o cidadão empossado se  apressa em dar-se o direito de mudar o texto constitucional que jurou defender, para permitir-se uma longa  permanência no poder, dele e dos grupos e partidos políticos que o apoiem, por décadas, inclusive desprezando o instrumento da reeleição por uma só vez, até que o povo  deles se canse, como aconteceu no Peru, com Alberto Fujimori, hoje na cadeia, após anos seguidos de empulhação,  parlapatanice e assalto aos cofres públicos.

Liderando essa desastrada campanha, o chavismo pretende impor a adoção do presidencialismo majestático e tiranizante de longo prazo, consolidando, assim, o padrão bolivariano de democracia do século XXI no espaço geográfico sulamericano.

Alega-se que os tempos que vivemos são outros, que “novas instituições” surgiram no berço esplêndido da América do Sul, como a Unasul e o “novo” parlamento regional que Hugo Chávez pretende implantar em Cochabamba, na Bolívia, claro que sob a  sua iluminada orientação ideológica, à revelia  ou em contraparte ao Parlamento do Mercosul, que luta com muita dificuldade para se consolidar e ainda respira sob a tutela dos Poderes Executivos dos Estados Partes fundadores do bloco. 

Logo, ainda que assim não entendam os militontos de plantão (apodo criado por Frei Betto, in “A Mosca Azul”, 2008), a deposição legal de Manuel Zelaya tem fundamento na Constituição de Honduras e representa, de modo transparente, a reação dos Poderes Judiciário e Legislativo daquele país, ambos com  a obrigação de defender a sua Constituição, que convocaram as suas Forças Armadas para fazer cumprir a Lei Maior e destituir um presidente desrespeitador do  próprio texto constitucional que lhe deu posse, levantando-se num legítimo contragolpe de Estado.

O mundo ocidental foi abalado pela destituição da monarquia em 1789, pela Revolução Francesa, geradora dos universais Direitos do Homem, e pela Revolução Norte-americana de 1776, que legitimou o  ideal republicano do revezamento presidencial, em 1787, no curto prazo, à sombra de uma sóbria Carta Magna, mas a moderna democracia sul-americana está sendo moldada não por princípios democráticos legitimadores de governos efetivamente republicanos, e, sim, por uma visão de mundo autoritária, forjada por lideranças oportunistas de uma esquerda jurássica, arrastada pelo Coronel Hugo Chávez e respaldada pelo ditador Fidel Castro (vide “Sombras do Paraíso”, 1994, de Antonio Rangel Bandeira).

Por ironia e contradição, enquanto Fidel Castro, depois de meio século no poder, autoriza o irmão, Raul Castro, a liderar a modernização e a abertura da economia cubana ao investimento estrangeiro, “por necessidade e desespero” (conforme Pedro Juan Gutiérrez, in “Trilogia Suja de Havana”, 2009), Hugo Chávez fecha, cada vez mais, a economia venezuelana aos investimentos capitalistas, internos ou externos.

Infelizmente, a América do Sul, e em especial o Brasil, caso se deixe levar pelo ultrapassado canto de sereia bolivariano, vai se preocupar com os passeios da Quarta Frota  norte-americana nas águas do Atlântico Sul,  ou com as bases militares cedidas pela Colômbia ao camarada Barack Obama, ao invés de se concentrar na criação de mecanismos de defesa contra o narcotráfico fronteiriço liderado pelas FARC, organização que bem conhece o Fernandinho Beira-Mar, ou, pegando mais leve, se preocupará em negociar o oferecimento de blocos do Pré-Sal aos chineses, cuja economia, em crescimento galopante, necessita  com urgência de novas fontes de suprimento de energia, essas, sim, tão carentes de uma Quarta Frota brasileira para bem protegê-las, e jamais tentará reforçar o pedido de um assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

Enfim,  concordamos que são muitos os perigos e as contradições que cercam a construção da moderna nação brasileira, mas pode-se afirmar que, fora do revezamento político dos governantes no curto prazo, previstos pelos sistemas de governo democráticos e pela vigência do Estado Democrático de Direito que, civilizadamente, implica a aceitação do conceito de soberania com suas devidas limitações, o bolivarianismo, se vingar no espaço geográfico brasileiro, com certeza atrasará a construção não só de uma uma próspera nação brasileira, mas de todo o projeto mercosulino, ainda que o “modelito” possa servir para encher as cestas básicas dos despossuídos com migalhas e as bolsas dos espertalhões da política e daqueles empresários que os apoiam com milhões de dólares e reais.

Atenção, pois, os santinhos de pau oco sul-americanos, pois os povos que habitam o nosso continente merecem que os compromissos políticos dos governantes, de preferência eleitos periodicamente, se concretizem em mais empregos, mais educação e saúde pública, mais serviços públicos eficientes e menos marketing gerador de falsos estadistas e seus incompetentes ideólogos e administradores dos negócios públicos em proveito próprio. 

A propósito, alguém tem dúvida de que Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e outros mais cotados no atual plano político latino-americano, no médio prazo, não serão repudiados pelas populações de seus países, como o foi Alberto Fujimori?

Vida longa, pois, à Constituição de Honduras.

Texto escrito em 24 de agosto de 2009

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