quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Para muito além da República Madisoniana

As últimas eleições norte-americanas denunciaram o fim do aristocrático modelo de República democrática, alicerçada em um sistema eleitoral viciado, imaginada por James Madison e discutida especialmente com Alexander Hamilton e John Jay nos artigos reunidos sob o nome de O Federalista, trabalho que os tornou conhecidos como os Pais Fundadores da Constituição e da moderna República dos Estados Unidos, após a guerra contra o domínio inglês, depois de dez anos de acirradas discussões que tiveram início com as Convenções de Virgínia e Anapólis e culminaram com a Convenção Constitucional na Filadélfia, em 1787, que iria se sustentar por mais de dois séculos e servir de modelo para constituições de inúmeros outros países no mundo inteiro, o Brasil inclusive.
Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata, “ganhou, mas não levou”, ou seja, obteve mais votos diretos do eleitorado votante, perto de um milhão de votos, do que o candidato Donald Trump, do Partido Republicano, que, no entanto, foi considerado o vencedor do pleito.

Pergunta o mundo inteiro, atento ao evento político nos Estados Unidos: como é possível que tal reversão possa acontecer em tão democrático sistema eleitoral, exemplo para o mundo há mais de duzentos anos?

Ora, tal reversão, ou melhor, vergonhosa contradição, só pode acontecer graças ao aristocrático modelo eleitoral vigente nos Estados Unidos, planejado com o precioso detalhe que permite àquele que é derrotado na apuração do voto direto alcançar a vitória definitiva se conseguir a maioria dos votos dos delegados representantes de cada unidade da federação, e esta não foi a primeira vez em que se apelou para a interpretação de regras do sistema eleitoral para decidir uma eleição já conquistada pelo voto direto: em 2000, o candidato do Partido Republicano George Bush, o  filho, ganhou as eleições presidenciais apelando para o julgamento da Suprema Corte de Justiça do país, e assim derrotando Al Gore, candidato pelo Partido Democrata, que obtivera mais votos diretos que ele.      

Dessa vez, antes mesmo do início da campanha eleitoral, Donald Trump soube identificar um país sempre dividido, desde 1861, pelo racismo que nunca acaba, apesar da resistência de negros como Martin Luther King, hoje muito mais pelo mau desempenho da economia nacional em consequência de vários fatores econômicos e sociais, causados, em parte, pelo processo de globalização que eliminou e transferiu indústrias para outros países e milhões de empregos foram destruídos, associado ao avanço tecnológico que privilegia o setor de serviços, além da ação de políticos e administradores públicos que privilegiam regras espúrias impostas por agentes do sistema financeiro, e graças a esse estado da arte, ele foi capaz de criar um discurso político de oposição que prometia “fazer a América grande mais uma vez” (Make America great again), recuperando-se as indústrias e os empregos perdidos, além de definir uma estratégia de campanha que concentrou seus ataques carregados de xenofobia, racismo, sexismo, misoginia, negação da vigente destruição do meio ambiente e divisão geopolítica do mundo com Vladimir Putin, que resumiram o descontentamento de metade dos cidadãos brancos norte-americanos herdeiros das sementes do racismo semeadas no terreno fértil da Guerra de Secessão, falando repetidas vezes para plateias de delegados das unidades federadas que reuniam os maiores números de delegados, os chamados “swinging states”, como Ohio, Iowa, Wisconsin, Pensilvânia, Michigan e Florida.

Em O Federalista, inúmeras vezes James Madison argumentou que a democracia popular era perigosa, e por isso mesmo a direção da nova República que surgia esplendorosa para o mundo devia ser delegada, pela via eleitoral do sufrágio universal, a sábios representantes do povo que fariam as leis no Legislativo para que o Executivo administrasse o país em nome de todos, e ao Judiciário caberia decidir sobre possíveis enfrentamentos conflituosos entre cidadãos, empresas e instituições. Foi bom enquanto durou, por pouco mais de dois séculos, mas o modelo chegou a um impasse: ou muda ou muda.

Antes de se eleger presidente da República norte-americana, em 2016, Donald Trump declarou em entrevista: “The electoral system is a disaster for democracy”, traduzindo: “O sistema eleitoral é um desastre para a democracia”; mas todos nós sabemos que ele é um perigoso demagogo que repete as visões de mundo de consultores conservadores e reacionários, um multimilionário empresário que se jactou perante as câmeras de televisão de sua esperteza como sonegador de impostos, de seu poder como macho estuprador, e que parece, nesta fase de sua vida, ter decidido brincar de político salvador da pátria, e para isso não hesitou em tomar de assalto o Partido Republicano e atropelar velhas e novas lideranças políticas para se candidatar ao cargo de Presidente da República, e, por ironia, elegeu-se graças ao modelo de sistema eleitoral que não mais critica nem considera um desastre, pois foi esta arquitetura eleitoral que lhe permitiu botar as mãos nas rédeas do poder republicano mais poderoso do planeta.

Divulgado o resultado das últimas eleições nos Estados Unidos, a metade do eleitorado que não aceita Donald Trump como presidente do país foi imediatamente para as ruas em protesto enraivecido, portando cartazes em que se podia ler “Mein Trump”, em alusão indignada ao livro “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, ou, simplesmente, “Power to the people” (Poder para o povo), quem sabe referindo-se à maioria de votos dados nas urnas à candidata Hillary Clinton, enquanto o milionário transformado em político populista denunciava que tais manifestações seriam fruto de incitamento da mídia, como se ele não soubesse que o país, incitado pelo seu discurso de campanha, mostrou um eleitorado perfeitamente dividido entre as visões de mundo dos dois candidatos presidenciais.

Enfim, os mortos continuam governando os vivos, e se a metade do eleitorado norte-americano, que apoia Donald Trump, sonha com a possibilidade do retorno das fábricas do “rust belt”, perdidas, junto com milhares de empregos, graças ao processo de globalização da economia, a outra metade que não o aceita como presidente também sonha, provavelmente sem o saber, com o retorno do modelo grego da antiga cidade de Atenas, de mais de quatro mil anos atrás, em que os representantes do povo eram democraticamente eleitos de acordo com um sistema eleitoral bi-representativo, pelo prazo de apenas um ano, em no máximo duas vezes não consecutivas, combinando-se eleições para certos cargos públicos e sorteio para outros, mas, com certeza, pelo menos parte desse eleitorado é sabedor da realização, hoje, de modelos representativos diretos na prática de vários países europeus e até de algumas unidades federativas canadenses, um verdadeiro experimento em movimento que os nossos políticos ainda não se deram conta de sua existência ou preferem ignorá-lo.

 A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos trará, com certeza, uma reviravolta no modo de governança do país, mais ainda por poder contar com as maiorias conquistadas pelos republicanos nas duas casas do Congresso, restando-nos esperar para assistir ao tumulto que será gerado pela ascendência de uma visão populista ancorada em promessas que não serão cumpridas, acompanhada de visões políticas conservadoras e reacionárias, tudo isto atado ao capitalismo financeiro dominante, que poderão virar o mundo de ponta-cabeça, bastando pensar numa aliança dos Estados Unidos com a Rússia contra os terroristas do Estado Islâmico e o avanço capitalista da China, uma grande parceira do capitalismo norte-americano, detentora de bilhões de dólares em títulos da dívida pública do grande irmão do Norte e de um arsenal atômico nas mãos de um poderoso exército não propriamente brancaleone.

Porém, o populismo que rejeita o pluralismo inerente à democracia numa sociedade complexa como os Estados Unidos, à semelhança do populismo petista que associa Dona Zelite ao  “nós” contra “eles” que conhecemos, em poucas palavras, todas as imagens negativas e assustadoras criadas e usadas por Donald Trump para convencer os homens brancos norte-americanos atingidos pelos efeitos da globalização da economia, um movimento econômico irreversível que se aperfeiçoa a cada cem anos, pode não passar de mais uma esperteza de um arrogante empresário que construiu um personagem para ser abandonado tão logo proclamado o resultado favorável das urnas.

O sistema eleitoral adotado pelos norte-americanos se espraiou pelo chamado mundo ocidental que se considera democrático, e carregou consigo a possibilidade de arranjos viciados que levam, inevitavelmente, a uma desenfreada corrupção que, no tempo cotidiano, muito mais do que no passado, se aproveita do poder da telemática geradora de imagens que envolvem e dominam corações e mentes da cidadania, seja ela pouco ou muito esclarecida quanto aos subterrâneos da política, e atraindo em especial os mais poderosos empresários de qualquer sociedade complexa que, para sustentar sua necessária sobrevivência na feroz competição de mercado, se oferecem para qualquer negócio que os líderes, grupos e partidos políticos lhes ofereçam.

O grande dilema da democracia dos dias de hoje, em qualquer quadrante do globo, está entranhado nos descaminhos do sistema eleitoral fundado no sufrágio universal, em especial porque separa o eleitor do representante eleito logo depois de proclamado o resultado cravado nas urnas, que recebem papel ou eletrônicas, como declarou Edmund Burke, o célebre político e pensador inglês que, no século dos oitocentos, não admitia ter que se submeter às demandas do seu eleitorado quando no exercício parlamentar.

Nem mesmo quando se criam mecanismos de cobrança popular ao sistema político, inseridos tantas vezes nas cartas constitucionais, se consegue cercear o dinamismo da criatividade desonesta de representantes políticos que se encastelam nos poderes Executivo e Legislativo e avançam sobre as finanças públicas, levando, pelo nefasto exemplo do assalto aos dinheiros arrecadados do povo, ao incremento assustadoramente progressivo da corrupção no interior das organizações do Estado, atraindo não só ricos empresários, mas toda e qualquer mente desonesta de qualquer escalão de governo ou classe social que consiga imaginar formas de se apossar de recursos financeiros sob a guarda de instituições públicas.

  James Madison temia a capacidade de ação das facções políticas, pois é assim que aborda, reflete e argumenta quando, em artigo no O Federalista, aponta os grupos que começavam a se formar, em sua época, interessados em agir no campo da política, que a partir de 1850 ganharam a denominação de partidos políticos, e que Robert Michels, sociólogo alemão, descobriu sobreviverem sempre dominados por uma Lei de Ferro das Oligarquias.

 Em outras palavras, os partidos políticos são dominados por uma meia dúzia de indivíduos que conseguem se instalar nos altos postos de direção partidária e dali não mais se deixam abalar, transformando-se nos verdadeiros donos desses partidos políticos, e fazendo deles organizações para negociatas em troca, especialmente no caso brasileiro, de verbas do Fundo Partidário e de apoio político aos governos, porque, sem este último, os eleitos para o exercício de cargos no poder Executivo nada conseguem realizar, paralisados pelas regras escritas do jogo político vigente, inseridas adequadamente nos Regimentos das Casas Legislativas, associadas à pauta de ação dos parlamentares desses partidos políticos que, por sua vez, prisioneiros de um circuito vicioso, estão obrigados a obedecer às ordens das oligarquias partidárias dominantes nesse importante espaço institucional do mundo democrático moderno. 

E assim o povo, em duas palavras, os eleitores, são postos de lado, legalmente, das discussões, das disputas em torno de temas que os afetam profundamente em seu cotidiano, enquanto são debatidos nos gabinetes das lideranças partidárias ou nas arenas de comissões técnicas, mas na verdade absolutamente obscuras e isoladas, no interior dos parlamentos do Poder Legislativo mundo afora, ao mesmo tempo em que parte da mídia eletrônica e impressa somente enxerga e divulga que vivemos no mais democrático dos mundos.

Será que é possível mudar esse modelo ultrapassado de participação política? Sim, já existem respostas para mudanças que possam oxigenar os sistemas políticos vigentes há mais de duzentos anos, com inúmeros experimentos sendo realizados em unidades federadas do Canadá e em alguns países da Europa.
 Vamos citar apenas cinco dos mais importantes dos referidos experimentos, realizados em nível nacional, dois deles no Canadá, e mais três respectivamente na Holanda, na Islândia e na Irlanda. 
Naquela que se pode considerar uma primeira fase, realizada entre os anos de 2004 e 2009, arquitetou-se fóruns de cidadãos nas províncias canadenses da Columbia Britânica e de Ontário, e um terceiro fórum teve lugar na Holanda, incentivado pela experiência canadense.
A segunda fase de experimentos de mudança na participação política teve início em 2010, e ainda está em pleno andamento, na Islândia e na Irlanda.
Assim, em 2004, a província canadense da Columbia Britânica deu início a uma corajosa e renovadora tentativa de democracia deliberativa, nunca antes realizada em qualquer outro espaço geográfico mundial dos tempos modernos: responsabilizar 160 cidadãos pela reforma da lei eleitoral nacional, que ainda se fundamentava no princípio britânico da maioria simples, em que o vencedor leva tudo, em contraste com o sistema da proporcionalidade adotado em tantos outros países. O grupo, escolhido aleatoriamente, foi responsabilizado pelo encaminhamento de uma proposta de reforma do sistema eleitoral canadense e trabalhou, regularmente, durante um ano inteiro, discutindo um tema que os partidos políticos, em qualquer espaço geográfico, encontram muita dificuldade em mudar, porque sempre descobrem desvantagens que podem prejudica-los, no caso da adoção de novas regras.
Em Ontário, se acrescentaram novidades ao processo de formação do grupo: foram selecionados, dentre inúmeros candidatos, por sorteio, 103 cidadãos, sendo 52 mulheres e 51 homens, respeitando-se a pirâmide etária, e pelo menos um deles deveria ser nascido no Canadá, e apenas aquele que fosse indicado presidente do grupo tinha que ser indicado pelos organizadores do evento. Dos candidatos escolhidos por sorteio, setenta-e-sete tinham nascido no Canadá, e os restantes vinte-e-sete eram cidadãos nascidos em outros países.
O grupo de Ontário era formado por cuidadores de crianças, contadores, operários, professores, servidores públicos, empresários, programadores de computação, estudantes e profissionais da saúde, e vale ressaltar que tiveram a orientação de especialistas técnicos para se familiarizarem com textos sobre o tema, no decorrer dos doze meses de duração do projeto e, ao final dos trabalhos, conseguiu apresentar uma proposta de reforma do sistema eleitoral canadense.
Na Holanda, a iniciativa de formar um grupo de cidadãos, convocados aleatoriamente, partiu de um partido político que há muitos anos pedia a reforma das regras do sistema eleitoral e que, finalmente, conseguiu, aproveitando-se da experiência canadense, convencer os demais partidos políticos, da coalizão que faziam parte, a realizarem um Fórum de Cidadãos para pensar o sistema eleitoral canadense a partir do ponto de vista da cidadania. Em 2006, o partido político que teve a iniciativa de lançar o projeto não conseguiu eleger representantes, e todo o trabalho, mesmo tendo sido iniciado e apresentado relatórios, foi abandonado, por decisão do gabinete do Primeiro Ministro Jan Peter Balkenende, apesar do gasto de mais de cinco milhões de euros necessários para bancar a experiência, além de não autorizar a convocação de um referendo que registraria a opinião da cidadania com direito de voto.

Nos três casos, o recrutamento dos cidadãos para trabalhar nos projetos seguiram as seguintes etapas: 1) uma grande amostragem de cidadãos foi escolhida do censo eleitoral por sorteio, e convidados pelo correio; 2) esta primeira fase foi seguida por um período de inscrições voluntárias de pessoas interessadas em participar do projeto; 3) na última fase do processo de seleção, todos os inscritos passaram por um sorteio que selecionava grupos de candidatos segundo uma distribuição balanceada de idades, sexo, etnia e outras variáveis, completando um circuito que envolvia sorteio, seleção voluntária e sorteio mais uma vez.
Finalmente, as propostas de reforma do sistema eleitoral no Canadá, apresentados pelos cidadãos da Columbia Britânica e de Ontário, foram submetidas a um referendo, o que lhes garantiria a necessária legitimidade.  Na Columbia Britânica, 57,7% dos eleitores votaram a favor da mudança proposta pelo fórum de democracia direta, mas eram necessários 60% da totalidade dos votos válidos para sua aprovação. Em Ontário, apenas 36,9 dos votantes se pronunciaram a favor das mudanças propostas.
Vários motivos são relacionados pelos defensores de fórmulas de democracia direta para explicar o fracasso das experiências até agora realizadas, no Canadá e na Holanda, vamos apontar apenas três deles, pois o tempo e o espaço de que dispomos são curtos: 1) Os cidadãos que foram convocados para o referendo não foram informados sobre o projeto e sua intenção de renovar a política pela participação direta de grupos de cidadãos discutindo, debatendo e propondo novas leis, que devem ser submetidas à aprovação ou não pelo restante dos eleitores; 2) Fóruns de Cidadãos, por enquanto, são instituições meramente temporárias, com um mandato temporário, portanto suas decisões ainda não têm o peso das decisões formais das instituições estabelecidas há mais de dois séculos; 3) Os partidos políticos muitas vezes têm interesse em desacreditar esse tipo de experimentos, ou simplesmente os ignora, pois uma reforma do sistema eleitoral vigente poderá tirar-lhes poder.

A propósito, devemos lembrar que referendos revelam a opinião emocionada do eleitor, um voto dado muito mais com a coragem do que com a razão; enquanto grupos de cidadãos reunidos para discutir e debater temas controversos, em processos planejados de democracia deliberativa, trazem à luz opinião pública iluminada por decisões técnicas, formuladas sob o amparo de conhecimento aprofundado sobre o assunto levado às discussões e debates.

 De qualquer modo, os resultados finais dos experimentos canadenses serviram de exemplo fecundo para os projetos de democracia direta que foram realizados na Islândia e na Irlanda, a partir de 2010, projetos responsáveis pela elaboração de corajosas propostas de mudanças nas constituições de seus países: no primeiro dos países citados, uma revisão de toda a Constituição vigente e, no segundo, de apenas oito artigos constitucionais.
Deve ser ressaltado que a decisão de entregar aos cidadãos a responsabilidade de redigir uma constituição por inteiro, no caso da Islândia, e de alguns artigos, no caso da Irlanda, deveu-se, em grande parte, à crise financeira mundial de 2008, que levou o primeiro destes países à falência e o segundo, a uma profunda recessão econômica, consequências que levaram seus governantes e representantes políticos a uma absoluta desmoralização perante o eleitorado, além de demonstrar a falência do modelo republicano-democrático dominante.

Nesses dois países, os governantes entenderam que alguma coisa diferente, em matéria de inovação democrática, tinha que ser levada a cabo, tanto para enfrentar os descalabros das finanças públicas e das economias, quanto para ganhar de volta a confiança do cidadão eleitor.
Entre nós, brasileiros, na presença de uma violenta crise política, como a falência das finanças públicas, a primeira e única lembrança dos governantes é o aumento de impostos, taxas e contribuições obrigatórias que oneram o cidadão comum assalariado, como no caso recente do Rio de Janeiro, em que o Governador “ Grande”, o Abominável Incompetente, quis instituir o aumento da cobrança previdenciária de 11 para 30%, que somados aos 30% de imposto de renda já cobrados pelo Governo Federal, levaria toda a cidadania assalariada à falência absoluta.

 Mas voltemos à Islândia e à Irlanda, com seus republicanos projetos de democracia direta.

Para começar, a Islândia não se prendeu à formula de escolha de 160 cidadãos por sorteio, e adotou uma seleção por eleição, dentre 522 candidatos, dos quais apenas 25 seriam escolhidos por voto secreto depositados nas urnas pelo restante da população convocada, mas os partidos políticos conseguiram anular e impedir esta votação, e o parlamento foi encarregado de selecionar o grupo, defendendo o princípio de que um fórum constitucional deve ser escolhido por eleição. Era claro o desejo de impedir as atividades desse grupo que, argumentava-se, não tinha legitimidade entre os cidadãos nem entre os políticos.

Este impasse foi resolvido pela convocação de milhares de cidadãos que discutiram princípios e valores da nova constituição com antecedência, ao mesmo tempo em que um grupo de sete parlamentares elaborou um documento preliminar, com 700 páginas, contendo conselhos constitucionais. Em tempo: estes dois movimentos pretendiam livrar o resultado futuro de quaisquer tipos de críticas.

Para dar a maior transparência ao projeto, que reunia informações as mais diversas, os organizadores desta original constituinte postavam, toda semana, nas redes eletrônicas, as primeiras versões das cláusulas constitucionais, e recebia as contrapropostas e/ou alterações da comunidade via Facebook, Twiter e outras mídias, num total de mais de quatro mil colaborações, o que contribuía para o enriquecimento do novo texto constitucional. A imprensa descreveu o trabalho como a primeira constituição produzida por uma multidão de constituintes, e no prazo de apenas quatro meses, e apontou a amplitude do processo de consultas e a transparência do processo como as chaves do sucesso da instigante empreitada de democracia direta.   
A nova Constituição foi apresentada aos cidadãos da Islândia em um referendo, no dia 20 de outubro de 2012, e foi aprovada por dois terços do eleitorado.
Apenas como curiosidade, permitam-nos apontar a diversidade profissional das 25 pessoas escolhidas para discutir, debater e elaborar o novo texto constitucional islandês: sete delas ocupavam posições de liderança (em universidades, museus e sindicatos), cinco eram professores ou conferencistas, dois advogados, apenas um era representante religioso e outro fazendeiro, os outros nove eram cidadãos comuns.

Na Irlanda, a Convenção sobre a Constituição começou a trabalhar em janeiro de 2013 e também tirou lições dos experimentos democráticos que a antecederam.
 Os organizadores irlandeses do evento decidiram envolver representantes políticos no experimento de democracia direta desde seu início, ao contrário do que aconteceu na Islândia, mas não abriram mão do processo de seleção dos cidadãos por sorteio, e esta decisão teve o objetivo de acelerar a implantação das decisões tomadas pelo grupo, formado por sessenta-e-seis cidadãos representantes das duas Irlandas, e trinta-e-três políticos, além de reduzir o medo dos parlamentares da participação cidadã e prevenir as reações de desprezo dos partidos políticos à iniciativa inovadora, mesmo correndo o risco do poder de influência dos políticos, graças à prática adquirida no trabalho parlamentar, sobre os demais participantes.

Em resumo, que o nosso espaço é curto e o assunto pode tornar-se cansativo, as recomendações do grupo sobre mudanças em oito artigos constitucionais passaram, em primeiro lugar, pelas duas câmaras do Parlamento Irlandês, depois pelo governo em exercício e, finalmente, por um referendo.

Uma maioria de 79% dos participantes da Convenção sobre a Constituição Irlandesa recomendou, por exemplo, que o casamento entre homossexuais fosse admitido por lei, e no dia 22 de maio de 2015, em um referendo, 62% da população irlandesa aprovou este novo mandamento constitucional, sendo esta a primeira vez no mundo moderno em que uma mudança constitucional foi efetivada por discussões entre cidadãos escolhidos por sorteio, mesmo contando com a colaboração de parlamentares eleitos por sufrágio universal, demonstrando-se, assim, que era possível o retorno das práticas da democracia grega bi-representativa e sua adaptação ao cenário político dos dias de hoje.

Enfim, para concluir este pequeno ensaio sobre a necessidade de reformulação do modo de fazer política na democracia republicana moderna, só podemos afirmar que novos experimentos de democracia direta estão sendo realizados em países do mundo ocidental, e sempre procurando fugir do modelo criado por James Madison e seus contemporâneos há mais de duzentos anos, que, está comprovado, impede a participação cidadã de forma mais direta do que se vem permitindo até agora.

Assim, um questionamento deve ser feito, em especial neste ruidoso instante da política brasileira, assustada com o andamento da Operação Lava Jato que faz dobrar os sinos anunciadores de novos tempos políticos: até quando adiaremos o funcionamento de uma Terceira Casa Congressual temporária, composta por cidadãos convocados aleatoriamente, sem qualquer participação dos partidos políticos, para discutir e debater os grandes temas que afligem as populações nacionais, com o objetivo explícito de complementar, democraticamente, o trabalho republicano dos poderes Executivo e Legislativo em nosso país?

 Por fim, em conclusão, nesta última hora, vale parodiar o escritor norte-americano Ernest Hemingway que, por sua vez, citou o poeta inglês John Donne: “Senhores políticos brasileiros, não perguntem por quem os sinos dobram, porque eles dobram por vocês”.


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