As últimas eleições
norte-americanas denunciaram o fim do aristocrático modelo de República
democrática, alicerçada em um sistema eleitoral viciado, imaginada por James
Madison e discutida especialmente com Alexander Hamilton e John Jay nos artigos
reunidos sob o nome de O Federalista, trabalho que os tornou conhecidos
como os Pais Fundadores da Constituição e da moderna República dos Estados
Unidos, após a guerra contra o domínio inglês, depois de dez anos de acirradas
discussões que tiveram início com as Convenções de Virgínia e Anapólis e
culminaram com a Convenção Constitucional na Filadélfia, em 1787, que iria se
sustentar por mais de dois séculos e servir de modelo para constituições de
inúmeros outros países no mundo inteiro, o Brasil inclusive.
Hillary Clinton, a candidata do
Partido Democrata, “ganhou, mas não levou”, ou seja, obteve mais votos diretos
do eleitorado votante, perto de um milhão de votos, do que o candidato Donald
Trump, do Partido Republicano, que, no entanto, foi considerado o vencedor do
pleito.
Pergunta o mundo inteiro, atento
ao evento político nos Estados Unidos: como é possível que tal reversão possa
acontecer em tão democrático sistema eleitoral, exemplo para o mundo há mais de
duzentos anos?
Ora, tal reversão, ou melhor, vergonhosa
contradição, só pode acontecer graças ao aristocrático modelo eleitoral vigente
nos Estados Unidos, planejado com o precioso detalhe que permite àquele que é
derrotado na apuração do voto direto alcançar a vitória definitiva se conseguir
a maioria dos votos dos delegados representantes de cada unidade da federação,
e esta não foi a primeira vez em que se apelou para a interpretação de regras
do sistema eleitoral para decidir uma eleição já conquistada pelo voto direto:
em 2000, o candidato do Partido Republicano George Bush, o filho, ganhou as eleições presidenciais
apelando para o julgamento da Suprema Corte de Justiça do país, e assim
derrotando Al Gore, candidato pelo Partido Democrata, que obtivera mais votos
diretos que ele.
Dessa vez, antes mesmo do início
da campanha eleitoral, Donald Trump soube identificar um país sempre dividido,
desde 1861, pelo racismo que nunca acaba, apesar da resistência de negros como
Martin Luther King, hoje muito mais pelo mau desempenho da economia nacional em
consequência de vários fatores econômicos e sociais, causados, em parte, pelo
processo de globalização que eliminou e transferiu indústrias para outros
países e milhões de empregos foram destruídos, associado ao avanço tecnológico
que privilegia o setor de serviços, além da ação de políticos e administradores
públicos que privilegiam regras espúrias impostas por agentes do sistema
financeiro, e graças a esse estado da arte, ele foi capaz de criar um discurso
político de oposição que prometia “fazer a América grande mais uma vez” (Make
America great again), recuperando-se as indústrias e os empregos perdidos, além
de definir uma estratégia de campanha que concentrou seus ataques carregados de
xenofobia, racismo, sexismo, misoginia, negação da vigente destruição do meio
ambiente e divisão geopolítica do mundo com Vladimir Putin, que resumiram o
descontentamento de metade dos cidadãos brancos norte-americanos herdeiros das
sementes do racismo semeadas no terreno fértil da Guerra de Secessão, falando repetidas
vezes para plateias de delegados das unidades federadas que reuniam os maiores
números de delegados, os chamados “swinging states”, como Ohio, Iowa,
Wisconsin, Pensilvânia, Michigan e Florida.
Em O Federalista, inúmeras vezes James
Madison argumentou que a democracia popular era perigosa, e por isso mesmo a
direção da nova República que surgia esplendorosa para o mundo devia ser
delegada, pela via eleitoral do sufrágio universal, a sábios representantes do
povo que fariam as leis no Legislativo para que o Executivo administrasse o
país em nome de todos, e ao Judiciário caberia decidir sobre possíveis
enfrentamentos conflituosos entre cidadãos, empresas e instituições. Foi bom
enquanto durou, por pouco mais de dois séculos, mas o modelo chegou a um
impasse: ou muda ou muda.
Antes de se eleger presidente da República
norte-americana, em 2016, Donald Trump declarou em entrevista: “The electoral
system is a disaster for democracy”, traduzindo: “O sistema
eleitoral é um desastre para a democracia”; mas todos nós sabemos que
ele é um perigoso demagogo que repete as visões de mundo de consultores
conservadores e reacionários, um multimilionário empresário que se jactou
perante as câmeras de televisão de sua esperteza como sonegador de impostos, de
seu poder como macho estuprador, e que parece, nesta fase de sua vida, ter
decidido brincar de político salvador da pátria, e para isso não hesitou em
tomar de assalto o Partido Republicano e atropelar velhas e novas lideranças
políticas para se candidatar ao cargo de Presidente da República, e, por
ironia, elegeu-se graças ao modelo de sistema eleitoral que não mais critica
nem considera um desastre, pois foi esta arquitetura eleitoral que lhe permitiu
botar as mãos nas rédeas do poder republicano mais poderoso do planeta.
Divulgado o resultado das últimas
eleições nos Estados Unidos, a metade do eleitorado que não aceita Donald Trump
como presidente do país foi imediatamente para as ruas em protesto enraivecido,
portando cartazes em que se podia ler “Mein Trump”, em alusão indignada ao
livro “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, ou, simplesmente, “Power to the people”
(Poder para o povo), quem sabe referindo-se à maioria de votos dados nas urnas
à candidata Hillary Clinton, enquanto o milionário transformado em político
populista denunciava que tais manifestações seriam fruto de incitamento da
mídia, como se ele não soubesse que o país, incitado pelo seu discurso de
campanha, mostrou um eleitorado perfeitamente dividido entre as visões de mundo
dos dois candidatos presidenciais.
Enfim, os mortos continuam
governando os vivos, e se a metade do eleitorado norte-americano, que apoia
Donald Trump, sonha com a possibilidade do retorno das fábricas do “rust belt”,
perdidas, junto com milhares de empregos, graças ao processo de globalização da
economia, a outra metade que não o aceita como presidente também sonha,
provavelmente sem o saber, com o retorno do modelo grego da antiga cidade de
Atenas, de mais de quatro mil anos atrás, em que os representantes do povo eram
democraticamente eleitos de acordo com um sistema eleitoral bi-representativo, pelo
prazo de apenas um ano, em no máximo duas vezes não consecutivas, combinando-se
eleições para certos cargos públicos e sorteio para outros, mas, com certeza, pelo
menos parte desse eleitorado é sabedor da realização, hoje, de modelos
representativos diretos na prática de vários países europeus e até de algumas
unidades federativas canadenses, um verdadeiro experimento em movimento que os
nossos políticos ainda não se deram conta de sua existência ou preferem ignorá-lo.
A eleição de Donald Trump à presidência dos
Estados Unidos trará, com certeza, uma reviravolta no modo de governança do
país, mais ainda por poder contar com as maiorias conquistadas pelos
republicanos nas duas casas do Congresso, restando-nos esperar para assistir ao
tumulto que será gerado pela ascendência de uma visão populista ancorada em promessas
que não serão cumpridas, acompanhada de visões políticas conservadoras e
reacionárias, tudo isto atado ao capitalismo financeiro dominante, que poderão
virar o mundo de ponta-cabeça, bastando pensar numa aliança dos Estados Unidos
com a Rússia contra os terroristas do Estado Islâmico e o avanço capitalista da
China, uma grande parceira do capitalismo norte-americano, detentora de bilhões
de dólares em títulos da dívida pública do grande irmão do Norte e de um
arsenal atômico nas mãos de um poderoso exército não propriamente brancaleone.
Porém, o populismo que rejeita o
pluralismo inerente à democracia numa sociedade complexa como os Estados
Unidos, à semelhança do populismo petista que associa Dona Zelite ao “nós” contra “eles” que conhecemos, em poucas
palavras, todas as imagens negativas e assustadoras criadas e usadas por Donald
Trump para convencer os homens brancos norte-americanos atingidos pelos efeitos
da globalização da economia, um movimento econômico irreversível que se
aperfeiçoa a cada cem anos, pode não passar de mais uma esperteza de um arrogante
empresário que construiu um personagem para ser abandonado tão logo proclamado
o resultado favorável das urnas.
O sistema eleitoral adotado pelos
norte-americanos se espraiou pelo chamado mundo ocidental que se considera
democrático, e carregou consigo a possibilidade de arranjos viciados que levam,
inevitavelmente, a uma desenfreada corrupção que, no tempo cotidiano, muito
mais do que no passado, se aproveita do poder da telemática geradora de imagens
que envolvem e dominam corações e mentes da cidadania, seja ela pouco ou muito
esclarecida quanto aos subterrâneos da política, e atraindo em especial os mais
poderosos empresários de qualquer sociedade complexa que, para sustentar sua
necessária sobrevivência na feroz competição de mercado, se oferecem para
qualquer negócio que os líderes, grupos e partidos políticos lhes ofereçam.
O grande dilema da democracia dos
dias de hoje, em qualquer quadrante do globo, está entranhado nos descaminhos
do sistema eleitoral fundado no sufrágio universal, em especial porque separa o
eleitor do representante eleito logo depois de proclamado o resultado cravado
nas urnas, que recebem papel ou eletrônicas, como declarou Edmund Burke, o
célebre político e pensador inglês que, no século dos oitocentos, não admitia
ter que se submeter às demandas do seu eleitorado quando no exercício
parlamentar.
Nem mesmo quando se criam
mecanismos de cobrança popular ao sistema político, inseridos tantas vezes nas
cartas constitucionais, se consegue cercear o dinamismo da criatividade
desonesta de representantes políticos que se encastelam nos poderes Executivo e
Legislativo e avançam sobre as finanças públicas, levando, pelo nefasto exemplo
do assalto aos dinheiros arrecadados do povo, ao incremento assustadoramente
progressivo da corrupção no interior das organizações do Estado, atraindo não
só ricos empresários, mas toda e qualquer mente desonesta de qualquer escalão
de governo ou classe social que consiga imaginar formas de se apossar de
recursos financeiros sob a guarda de instituições públicas.
James Madison temia a capacidade de ação das facções políticas, pois é
assim que aborda, reflete e argumenta quando, em artigo no O Federalista, aponta os
grupos que começavam a se formar, em sua época, interessados em agir no campo
da política, que a partir de 1850 ganharam a denominação de partidos políticos,
e que Robert Michels, sociólogo alemão, descobriu sobreviverem sempre dominados
por uma Lei de Ferro das Oligarquias.
Em outras palavras, os partidos políticos são dominados
por uma meia dúzia de indivíduos que conseguem se instalar nos altos postos de
direção partidária e dali não mais se deixam abalar, transformando-se nos
verdadeiros donos desses partidos políticos, e fazendo deles organizações para
negociatas em troca, especialmente no caso brasileiro, de verbas do Fundo
Partidário e de apoio político aos governos, porque, sem este último, os
eleitos para o exercício de cargos no poder Executivo nada conseguem realizar,
paralisados pelas regras escritas do jogo político vigente, inseridas
adequadamente nos Regimentos das Casas Legislativas, associadas à pauta de ação
dos parlamentares desses partidos políticos que, por sua vez, prisioneiros de
um circuito vicioso, estão obrigados a obedecer às ordens das oligarquias
partidárias dominantes nesse importante espaço institucional do mundo
democrático moderno.
E assim o povo, em duas palavras,
os eleitores, são postos de lado, legalmente, das discussões, das disputas em
torno de temas que os afetam profundamente em seu cotidiano, enquanto são
debatidos nos gabinetes das lideranças partidárias ou nas arenas de comissões
técnicas, mas na verdade absolutamente obscuras e isoladas, no interior dos
parlamentos do Poder Legislativo mundo afora, ao mesmo tempo em que parte da
mídia eletrônica e impressa somente enxerga e divulga que vivemos no mais
democrático dos mundos.
Será que é possível mudar esse
modelo ultrapassado de participação política? Sim, já existem respostas para
mudanças que possam oxigenar os sistemas políticos vigentes há mais de duzentos
anos, com inúmeros experimentos sendo realizados em unidades federadas do
Canadá e em alguns países da Europa.
Vamos citar apenas cinco dos mais importantes
dos referidos experimentos, realizados em nível nacional, dois deles no Canadá,
e mais três respectivamente na Holanda, na Islândia e na Irlanda.
Naquela que se pode considerar
uma primeira fase, realizada entre os anos de 2004 e 2009, arquitetou-se fóruns
de cidadãos nas províncias canadenses da Columbia Britânica e de Ontário, e um
terceiro fórum teve lugar na Holanda, incentivado pela experiência canadense.
A segunda fase de experimentos de
mudança na participação política teve início em 2010, e ainda está em pleno
andamento, na Islândia e na Irlanda.
Assim, em 2004, a província
canadense da Columbia Britânica deu início a uma corajosa e renovadora tentativa
de democracia deliberativa, nunca antes realizada em qualquer outro espaço
geográfico mundial dos tempos modernos: responsabilizar 160 cidadãos pela
reforma da lei eleitoral nacional, que ainda se fundamentava no princípio
britânico da maioria simples, em que o vencedor leva tudo, em contraste com o
sistema da proporcionalidade adotado em tantos outros países. O grupo,
escolhido aleatoriamente, foi responsabilizado pelo encaminhamento de uma
proposta de reforma do sistema eleitoral canadense e trabalhou, regularmente,
durante um ano inteiro, discutindo um tema que os partidos políticos, em
qualquer espaço geográfico, encontram muita dificuldade em mudar, porque sempre
descobrem desvantagens que podem prejudica-los, no caso da adoção de novas
regras.
Em Ontário, se acrescentaram novidades
ao processo de formação do grupo: foram selecionados, dentre inúmeros
candidatos, por sorteio, 103 cidadãos, sendo 52 mulheres e 51 homens,
respeitando-se a pirâmide etária, e pelo menos um deles deveria ser nascido no
Canadá, e apenas aquele que fosse indicado presidente do grupo tinha que ser
indicado pelos organizadores do evento. Dos candidatos escolhidos por sorteio,
setenta-e-sete tinham nascido no Canadá, e os restantes vinte-e-sete eram
cidadãos nascidos em outros países.
O grupo de Ontário era formado
por cuidadores de crianças, contadores, operários, professores, servidores
públicos, empresários, programadores de computação, estudantes e profissionais
da saúde, e vale ressaltar que tiveram a orientação de especialistas técnicos
para se familiarizarem com textos sobre o tema, no decorrer dos doze meses de
duração do projeto e, ao final dos trabalhos, conseguiu apresentar uma proposta
de reforma do sistema eleitoral canadense.
Na Holanda, a iniciativa de
formar um grupo de cidadãos, convocados aleatoriamente, partiu de um partido
político que há muitos anos pedia a reforma das regras do sistema eleitoral e
que, finalmente, conseguiu, aproveitando-se da experiência canadense, convencer
os demais partidos políticos, da coalizão que faziam parte, a realizarem um
Fórum de Cidadãos para pensar o sistema eleitoral canadense a partir do ponto
de vista da cidadania. Em 2006, o partido político que teve a iniciativa de
lançar o projeto não conseguiu eleger representantes, e todo o trabalho, mesmo
tendo sido iniciado e apresentado relatórios, foi abandonado, por decisão do
gabinete do Primeiro Ministro Jan Peter Balkenende, apesar do gasto de mais de
cinco milhões de euros necessários para bancar a experiência, além de não
autorizar a convocação de um referendo que registraria a opinião da cidadania
com direito de voto.
Nos três casos, o recrutamento
dos cidadãos para trabalhar nos projetos seguiram as seguintes etapas: 1) uma
grande amostragem de cidadãos foi escolhida do censo eleitoral por sorteio, e
convidados pelo correio; 2) esta primeira fase foi seguida por um período de
inscrições voluntárias de pessoas interessadas em participar do projeto; 3) na
última fase do processo de seleção, todos os inscritos passaram por um sorteio
que selecionava grupos de candidatos segundo uma distribuição balanceada de
idades, sexo, etnia e outras variáveis, completando um circuito que envolvia
sorteio, seleção voluntária e sorteio mais uma vez.
Finalmente, as propostas de
reforma do sistema eleitoral no Canadá, apresentados pelos cidadãos da Columbia
Britânica e de Ontário, foram submetidas a um referendo, o que lhes garantiria
a necessária legitimidade. Na Columbia
Britânica, 57,7% dos eleitores votaram a favor da mudança proposta pelo fórum
de democracia direta, mas eram necessários 60% da totalidade dos votos válidos
para sua aprovação. Em Ontário, apenas 36,9 dos votantes se pronunciaram a
favor das mudanças propostas.
Vários motivos são relacionados
pelos defensores de fórmulas de democracia direta para explicar o fracasso das
experiências até agora realizadas, no Canadá e na Holanda, vamos apontar apenas
três deles, pois o tempo e o espaço de que dispomos são curtos: 1) Os cidadãos
que foram convocados para o referendo não foram informados sobre o projeto e
sua intenção de renovar a política pela participação direta de grupos de
cidadãos discutindo, debatendo e propondo novas leis, que devem ser submetidas
à aprovação ou não pelo restante dos eleitores; 2) Fóruns de Cidadãos, por
enquanto, são instituições meramente temporárias, com um mandato temporário,
portanto suas decisões ainda não têm o peso das decisões formais das
instituições estabelecidas há mais de dois séculos; 3) Os partidos políticos
muitas vezes têm interesse em desacreditar esse tipo de experimentos, ou
simplesmente os ignora, pois uma reforma do sistema eleitoral vigente poderá
tirar-lhes poder.
A propósito, devemos lembrar que
referendos revelam a opinião emocionada do eleitor, um voto dado muito mais com
a coragem do que com a razão; enquanto grupos de cidadãos reunidos para
discutir e debater temas controversos, em processos planejados de democracia
deliberativa, trazem à luz opinião pública iluminada por decisões técnicas,
formuladas sob o amparo de conhecimento aprofundado sobre o assunto levado às
discussões e debates.
De qualquer modo, os resultados finais dos
experimentos canadenses serviram de exemplo fecundo para os projetos de
democracia direta que foram realizados na Islândia e na Irlanda, a partir de
2010, projetos responsáveis pela elaboração de corajosas propostas de mudanças
nas constituições de seus países: no primeiro dos países citados, uma revisão
de toda a Constituição vigente e, no segundo, de apenas oito artigos
constitucionais.
Deve ser ressaltado que a decisão
de entregar aos cidadãos a responsabilidade de redigir uma constituição por
inteiro, no caso da Islândia, e de alguns artigos, no caso da Irlanda,
deveu-se, em grande parte, à crise financeira mundial de 2008, que levou o
primeiro destes países à falência e o segundo, a uma profunda recessão
econômica, consequências que levaram seus governantes e representantes
políticos a uma absoluta desmoralização perante o eleitorado, além de demonstrar
a falência do modelo republicano-democrático dominante.
Nesses dois países, os
governantes entenderam que alguma coisa diferente, em matéria de inovação
democrática, tinha que ser levada a cabo, tanto para enfrentar os descalabros
das finanças públicas e das economias, quanto para ganhar de volta a confiança
do cidadão eleitor.
Entre nós, brasileiros, na
presença de uma violenta crise política, como a falência das finanças públicas,
a primeira e única lembrança dos governantes é o aumento de impostos, taxas e
contribuições obrigatórias que oneram o cidadão comum assalariado, como no caso
recente do Rio de Janeiro, em que o Governador “Pé Grande”, o Abominável
Incompetente, quis instituir o
aumento da cobrança previdenciária de 11 para 30%, que somados aos 30% de
imposto de renda já cobrados pelo Governo Federal, levaria toda a cidadania assalariada
à falência absoluta.
Mas voltemos à Islândia e à Irlanda, com seus
republicanos projetos de democracia direta.
Para começar, a Islândia não se
prendeu à formula de escolha de 160 cidadãos por sorteio, e adotou uma seleção
por eleição, dentre 522 candidatos, dos quais apenas 25 seriam escolhidos por
voto secreto depositados nas urnas pelo restante da população convocada, mas os
partidos políticos conseguiram anular e impedir esta votação, e o parlamento
foi encarregado de selecionar o grupo, defendendo o princípio de que um fórum
constitucional deve ser escolhido por eleição. Era claro o desejo de impedir as
atividades desse grupo que, argumentava-se, não tinha legitimidade entre os
cidadãos nem entre os políticos.
Este impasse foi resolvido pela
convocação de milhares de cidadãos que discutiram princípios e valores da nova
constituição com antecedência, ao mesmo tempo em que um grupo de sete
parlamentares elaborou um documento preliminar, com 700 páginas, contendo
conselhos constitucionais. Em tempo: estes dois movimentos pretendiam livrar o
resultado futuro de quaisquer tipos de críticas.
Para dar a maior transparência ao
projeto, que reunia informações as mais diversas, os organizadores desta original
constituinte postavam, toda semana, nas redes eletrônicas, as primeiras versões das cláusulas constitucionais, e recebia as
contrapropostas e/ou alterações da comunidade via Facebook, Twiter e outras
mídias, num total de mais de quatro mil colaborações, o que contribuía para o
enriquecimento do novo texto constitucional. A imprensa descreveu o
trabalho como a primeira constituição produzida por uma multidão de
constituintes, e no prazo de apenas quatro meses, e apontou a amplitude do
processo de consultas e a transparência do processo como as chaves do sucesso
da instigante empreitada de democracia direta.
A nova Constituição foi
apresentada aos cidadãos da Islândia em um referendo, no dia 20 de outubro de
2012, e foi aprovada por dois terços do eleitorado.
Apenas como curiosidade,
permitam-nos apontar a diversidade profissional das 25 pessoas escolhidas para
discutir, debater e elaborar o novo texto constitucional islandês: sete delas
ocupavam posições de liderança (em universidades, museus e sindicatos), cinco
eram professores ou conferencistas, dois advogados, apenas um era representante
religioso e outro fazendeiro, os outros nove eram cidadãos comuns.
Na Irlanda, a Convenção sobre a Constituição começou a trabalhar em
janeiro de 2013 e também tirou lições dos experimentos democráticos que a
antecederam.
Os organizadores irlandeses do evento
decidiram envolver representantes políticos no experimento de democracia direta
desde seu início, ao contrário do que aconteceu na Islândia, mas não abriram
mão do processo de seleção dos cidadãos por sorteio, e esta decisão teve o
objetivo de acelerar a implantação das decisões tomadas pelo grupo, formado por
sessenta-e-seis cidadãos representantes das duas Irlandas, e trinta-e-três
políticos, além de reduzir o medo dos parlamentares da participação cidadã e
prevenir as reações de desprezo dos partidos políticos à iniciativa inovadora,
mesmo correndo o risco do poder de influência dos políticos, graças à prática
adquirida no trabalho parlamentar, sobre os demais participantes.
Em resumo, que o nosso espaço é
curto e o assunto pode tornar-se cansativo, as recomendações do grupo sobre
mudanças em oito artigos constitucionais passaram, em primeiro lugar, pelas
duas câmaras do Parlamento Irlandês, depois pelo governo em exercício e,
finalmente, por um referendo.
Uma maioria de 79% dos
participantes da Convenção sobre a Constituição Irlandesa recomendou, por
exemplo, que o casamento entre homossexuais fosse admitido por lei, e no dia 22
de maio de 2015, em um referendo, 62% da população irlandesa aprovou este novo
mandamento constitucional, sendo esta a primeira vez no mundo moderno em que
uma mudança constitucional foi efetivada por discussões entre cidadãos
escolhidos por sorteio, mesmo contando com a colaboração de parlamentares
eleitos por sufrágio universal, demonstrando-se, assim, que era possível o
retorno das práticas da democracia grega bi-representativa e sua adaptação ao
cenário político dos dias de hoje.
Enfim, para concluir este pequeno
ensaio sobre a necessidade de reformulação do modo de fazer política na
democracia republicana moderna, só podemos afirmar que novos experimentos de
democracia direta estão sendo realizados em países do mundo ocidental, e sempre
procurando fugir do modelo criado por James Madison e seus contemporâneos há
mais de duzentos anos, que, está comprovado, impede a participação cidadã de
forma mais direta do que se vem permitindo até agora.
Assim, um questionamento deve ser
feito, em especial neste ruidoso instante da política brasileira, assustada com
o andamento da Operação Lava Jato que faz dobrar os sinos anunciadores de novos
tempos políticos: até quando adiaremos o funcionamento de uma Terceira Casa
Congressual temporária, composta por cidadãos convocados aleatoriamente, sem
qualquer participação dos partidos políticos, para discutir e debater os
grandes temas que afligem as populações nacionais, com o objetivo explícito de
complementar, democraticamente, o trabalho republicano dos poderes Executivo e
Legislativo em nosso país?
Por fim, em conclusão, nesta última hora, vale
parodiar o escritor norte-americano Ernest Hemingway que, por sua vez, citou o
poeta inglês John Donne: “Senhores políticos brasileiros, não perguntem por
quem os sinos dobram, porque eles dobram por vocês”.
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