quinta-feira, 11 de junho de 2020

Democracia, representação e constitucionalismo na América Latina

Na ágora grega, há cerca de 2.500 anos, o direito de ser escutado durante o processo de tomada de decisão política era assegurado a todo cidadão que na praça se fizesse presente, fosse ele Sólon, Péricles ou um cidadão qualquer, desde que não fosse escravo, meteco ou mulher.

Clístenes, o grande arconte ou governador ateniense, inventor da palavra democracia, que é formada por “demos”, expressão grega com duplo significado, “distrito” e também “povo,” conjugada com “kracia”, que tem o significado de “poder”. O grande governante grego teve a lúcida compreensão de que o poder estava localizado onde estava o povo, ou seja, no distrito. Daí podermos inferir que o primeiro significado de democracia seria o de “poder do distrito”, o poder local do povo que vive naquele distrito.

 Ora, se assim raciocinamos quanto à origem da palavra democracia, então deveríamos respeitar o poder municipal, que, no Brasil, é a célula inicial onde se localiza o povo. Mas não foi este o raciocínio que vingou quando se passou a aceitar e endeusar politicamente o uso da palavra democracia nos tempos modernos, pois se preferiu estender e ampliar a abrangência do termo para permitir seu uso exclusivo pelas classes dominantes, particularmente em grandes espaços geográficos como o brasileiro ou o norte-americano, países de extensões continentais.

E assim o termo democracia tem seu significado vinculado ao poder central de qualquer sociedade moderna, democracia só tem valor se expressar o poder da União sobre os estados ou unidades federadas e mais ainda sobre a unidade menor denominada de município. Este entendimento do termo democracia permite que as elites dominantes controlem os recursos financeiros arrecadados sob a forma de impostos e centralizados por um corpo funcional conhecido como Tesouro Nacional, e aí se impede a unidade municipal de investir em sua capacidade de governabilidade.

Nos tempos de hoje, o conceito de democracia evoluiu diferenciando-se do modelo grego clássico, substituindo-se o voto individualizado e o sorteio praticados naquela época pela exclusividade do sufrágio universal contemporâneo, que delega o direito de representação do cidadão para alguém que consiga se eleger para um cargo ou função pública.

Mas este ato moderno de representação política encerra uma contradição: trata-se de um governo do povo no qual o povo não está presente no processo de tomada de decisões, tornando-se, na verdade, uma representação democrática elitista.

Mesmo que levemos em conta os avanços tecnológicos, em comparação ao mundo grego socrático, é impossível reunir populações imensas, de Estados extensos que superam os limites das cidades-Estado gregas daquele tempo, e se tal façanha nos fosse permitida, os afazeres do mundo moderno impedem ou diminuem o tempo necessário para a participação política da maioria da cidadania.

A propósito da ocupação pelo trabalho que impede a participação política diária dos cidadãos, estamos assistindo a uma revolução urbana mundial com o povo nas ruas exigindo que se dê cabo da violência policial contra os negros, na esteira do assassinato do negro norte-americano George Floyd, por policiais brancos. Por ironia uma revolta popular que só pode explodir graças ao formidável desemprego causado pela pandemia do coronavírus ou Covid-19 chinês. Povo desempregado só pode estar na rua, procurando emprego ou reivindicando direitos.

Além dessa constatação de impossibilidade de uma democracia direta nas sociedades contemporâneas, é importante lembrar, como ensina Claude Lefort, que “o gesto inaugural” da democracia é “o reconhecimento da legitimidade do conflito”, como cita o professor Luis Felipe Miguel (in “Democracia e Representação: territórios em disputa”, 2013, Unesp, 331 p.), e para isso precisamos nos ouvir com reciprocidade quando participamos de debates públicos por meio de processos discursivos.

Não se pode negar que a democracia vem ganhando legitimidade universal, em especial a partir da Segunda Guerra Mundial, e também não se pode deixar de constatar que os modelos democráticos de governo, existentes em diferentes espaços políticos, estão a exigir reconstrução que amplie as formas de fiscalização e controle dos representantes pelos representados.

Aprendemos, pelo menos ao longo das últimas décadas, que nenhuma teoria democrática substantiva pode ser construída sem que se amplie seu alcance para além do mero momento eleitoral, o que contraria a corrente dominante da teoria democrática que entende democracia como um método de agregação, pelo mecanismo eleitoral, de preferências individuais preexistentes e formadas na esfera privada.

Jürgen Habermas e John Rawls, com base nas suas teorias filosóficas superando a teoria participacionista elaboraram o conceito de democracia deliberativa, rompendo com a percepção da democracia como simples método para a agregação de preferências individuais, buscando a autonomia da participação pública nos debates que produziriam as normas sociais pelos próprios integrantes da sociedade, resgatando, assim, o valor fundamental do projeto democrático, como nem na ágora grega da Antiguidade foi possível realizar.

Enfim, apesar de representar uma evolução, se compararmos os tempos modernos aos tempos gregos primevos, a eleição, não se pode negar, atomiza os cidadãos e reduz a efetividade das identidades coletivas muito mais cruciais para a ação política dos grupos dominados do que para a dos dominantes.

Se a democracia deliberativa for adotada como padrão político-constitucional, nas sociedades sul-americanas, por exemplo, como modelo de legitimação de decisões coletivas, precisará enfrentar o capitalismo, em especial o financeiro, e a questão da organização do mundo material e seu impacto no mundo político e, também muito importante, a questão da pluralização do controle dos modernos meios de comunicação de massas, sem contar com a importância da defesa dos chamados direitos humanos.

No entanto, os defensores da democracia deliberativa precisam entender que a questão da representação política, mais do que no passado remoto, é inescapável, e que seus mecanismos de vinculação e mediação dos representantes em relação aos representados possuem uma centralidade absoluta na discussão sobre qualquer ordem democrática.

Falhando nos quesitos acima apontados, a teoria deliberativa será muito mais um entrave do que uma base para pensar o aprofundamento da prática democrática, num momento em que a aceitação quase universal da democracia é ameaçada pela crescente deterioração da confiança dos cidadãos em relação às instituições representativas que deveriam efetivá-la, como o demonstra o declínio do comparecimento eleitoral, a ampliação da desconfiança em relação a essas instituições e às lideranças políticas e, por fim, o esvaziamento dos partidos políticos.

Deve ser ressaltado que os meios de comunicação de massas interferem no processo político partidário e eleitoral, com suas análises e seus apelos convertidos em imagens virtuais que transformam a realidade macroeconômica e social de sociedades complexas, em difícil situação de transição, apresentando-as num quadro de crescimento constante e equilíbrio perfeito que, em verdade, inexistem, pois o propósito maior das empresas do ramo das comunicações é entregar o poder a grupos políticos que buscam permanecer liderando por longas temporadas enquanto favorecem os lucros da imprensa a eles associados..

No contexto de uma luta permanente pelo poder, as elites dominantes de sociedades complexas e plurais em processo de desenvolvimento, com a colaboração dos integrantes de classe controladores dos meios de comunicação, transformam a política em uma forma de publicidade, um mero espetáculo entre tantos outros, em uma busca permanente de manutenção de projetos de poder de longo prazo e grandes margens de lucro para os donos das concessões públicas que vivem da veiculação de notícias, propaganda e publicidade..

A este cenário, as instituições democráticas em permanente processo de transição, nas sociedades mais estabilizadas, respondem com o instituto da “accountability”, que, de forma ampla, significa, na esteira da obra de John Stuart Mill, a possibilidade de a sociedade cobrar respostas daqueles representantes do povo a quem se delega o direito de agir afetando interesses alheios, ou coletivos, pelos quais cada autoridade governamental deve ser “accountable”.

Em poucas palavras, “accountability” política significa a obrigação que os poderes públicos têm, depois de eleitos, de se responsabilizar por seus atos, como pudemos ver claramente nos conflitos políticos no Brasil, no caso de Fernando Collor de Mello, em 1992, em Honduras, em 2009, no caso de José Manuel Rosales Zelaya e no Brasil mais uma vez, em 2016, no caso de Dilma Vana Rousseff, em que Presidentes da República foram chamados a responder por suas ações políticas de governo, obedecendo-se a um enquadramento constitucional e infraconstitucional legalmente amparado, em cada um desses casos, no princípio da “Rule of Law” (Império da Lei).

No ambiente constitucionalista no continente americano, com destaque para países da América Latina, as opções ideológicas, as preferências políticas e as inclinações pessoais levam a conflitos políticos em que se confunde o direito adquirido democraticamente nas urnas, escudando-se no que é legítimo para afrontar o que é legal, com o direito de cometer ilicitudes.

Assim, os governantes eleitos comportam-se como se não estivessem obrigados a responder, por exemplo, por crimes fiscais, como se a obrigação da prestação de contas pelos gastos públicos não estivesse submetida às leis do país, podendo afrontar, no caso brasileiro, o Artigo 70 e seu Parágrafo Único da Constituição de 1988, além de toda a legislação complementar que os acompanha, e pudessem apelar para organizações multinacionais em busca de defesa para seus atos, mesmo sabendo que órgãos estrangeiros não podem interferir nas decisões internas e soberanas dos Estados Nacionais, a não ser nos casos cobertos pelas leges mercatoria, digitalis ou sportiva sob o amparo de um transconstitucionalismo que começa a ser acreditado no plano internacional.

Mas não só a questão da prestação de contas é desrespeitada pelos governantes latino-americanos, como estamos assistindo no episódio venezuelano, em que um presidente eleito fracassa na administração da economia do país, e, com fundamento nessa questão e no desrespeito a direitos políticos da oposição, uma Assembleia Nacional também eleita legalmente pelas urnas, aciona dispositivo constitucional que pede a revogação do mandato presidencial, contando com o apoio de milhares de assinaturas de eleitores encaminhadas à justiça eleitoral, enquanto o primeiro mandatário busca saídas para não cumprir o mecanismo constitucionalizado.

Por fim, o constitucionalismo latino-americano vê-se obrigado a discutir estratégias de aprofundamento de democracia direta em decorrência das desigualdades sociais que afligem a região, resultado de uma assimetria no controle de recursos que refletem padrões estruturais que impactam a qualidade de vida dos cidadãos e que está vinculada a relações de dominação que bloqueiam a possibilidade de ação autônoma de indivíduos e de grupos fora das esferas do poder institucionalizado, considerados incapazes por uma desacreditada teoria econômica da produtividade marginal.

Na América Latina já não mais existe espaço para golpes de Estado que surjam de alianças entre lideranças civis e militares, mas no Brasil, por exemplo, a Suprema Corte de Justiça, na esteira da teoria da sociedade aberta, do jurista alemão Peter Häberle, exerce um ativismo marcado pela judicialização dos conflitos políticos e busca encontrar saídas para tais imbróglios sob o amparo do Império da Lei infraconstitucional, como os Regimentos Internos, ainda que contrarie posições ideológicas de grupos políticos democraticamente eleitos e desfaça atos administrativos cujas prerrogativas do poder Executivo para praticá-los estão legalmente amparadas na Constituição vigente desde 1988.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Lembre-se, você é responsável por sua opinião publicada neste blog!