Na ágora grega, há
cerca de 2.500 anos, o direito de ser escutado durante o processo de tomada de
decisão política era assegurado a todo cidadão que na praça se fizesse
presente, fosse ele Sólon, Péricles ou um cidadão qualquer, desde que não fosse
escravo, meteco ou mulher.
Clístenes, o grande
arconte ou governador ateniense, inventor da palavra democracia, que é formada
por “demos”, expressão grega com duplo significado, “distrito” e também “povo,”
conjugada com “kracia”, que tem o significado de “poder”. O grande governante
grego teve a lúcida compreensão de que o poder estava localizado onde estava o
povo, ou seja, no distrito. Daí podermos inferir que o primeiro significado de
democracia seria o de “poder do distrito”, o poder local do povo que vive
naquele distrito.
Ora, se assim raciocinamos quanto à origem da
palavra democracia, então deveríamos respeitar o poder municipal, que, no Brasil,
é a célula inicial onde se localiza o povo. Mas não foi este o raciocínio que
vingou quando se passou a aceitar e endeusar politicamente o uso da palavra
democracia nos tempos modernos, pois se preferiu estender e ampliar a
abrangência do termo para permitir seu uso exclusivo pelas classes dominantes,
particularmente em grandes espaços geográficos como o brasileiro ou o
norte-americano, países de extensões continentais.
E assim o termo
democracia tem seu significado vinculado ao poder central de qualquer sociedade
moderna, democracia só tem valor se expressar o poder da União sobre os estados
ou unidades federadas e mais ainda sobre a unidade menor denominada de município.
Este entendimento do termo democracia permite que as elites dominantes
controlem os recursos financeiros arrecadados sob a forma de impostos e
centralizados por um corpo funcional conhecido como Tesouro Nacional, e aí se
impede a unidade municipal de investir em sua capacidade de governabilidade.
Nos
tempos de hoje, o conceito de democracia evoluiu diferenciando-se do modelo
grego clássico, substituindo-se o voto individualizado e o sorteio praticados naquela
época pela exclusividade do sufrágio universal contemporâneo, que delega o
direito de representação do cidadão para alguém que consiga se eleger para um
cargo ou função pública.
Mas
este ato moderno de representação política encerra uma contradição: trata-se de
um governo do povo no qual o povo não está presente no processo de tomada de
decisões, tornando-se, na verdade, uma representação democrática elitista.
Mesmo
que levemos em conta os avanços tecnológicos, em comparação ao mundo grego
socrático, é impossível reunir populações imensas, de Estados extensos que
superam os limites das cidades-Estado gregas daquele tempo, e se tal façanha
nos fosse permitida, os afazeres do mundo moderno impedem ou diminuem o tempo
necessário para a participação política da maioria da cidadania.
A
propósito da ocupação pelo trabalho que impede a participação política diária
dos cidadãos, estamos assistindo a uma revolução urbana mundial com o povo nas
ruas exigindo que se dê cabo da violência policial contra os negros, na esteira
do assassinato do negro norte-americano George Floyd, por policiais brancos. Por
ironia uma revolta popular que só pode explodir graças ao formidável desemprego
causado pela pandemia do coronavírus ou Covid-19 chinês. Povo desempregado só
pode estar na rua, procurando emprego ou reivindicando direitos.
Além
dessa constatação de impossibilidade de uma democracia direta nas sociedades
contemporâneas, é importante lembrar, como ensina Claude Lefort, que “o gesto
inaugural” da democracia é “o reconhecimento da legitimidade do conflito”, como
cita o professor Luis Felipe Miguel (in “Democracia e Representação:
territórios em disputa”, 2013, Unesp, 331 p.), e para isso precisamos nos ouvir
com reciprocidade quando participamos de debates públicos por meio de processos
discursivos.
Não
se pode negar que a democracia vem ganhando legitimidade universal, em especial
a partir da Segunda Guerra Mundial, e também não se pode deixar de constatar
que os modelos democráticos de governo, existentes em diferentes espaços
políticos, estão a exigir reconstrução que amplie as formas de fiscalização e
controle dos representantes pelos representados.
Aprendemos,
pelo menos ao longo das últimas décadas, que nenhuma teoria democrática
substantiva pode ser construída sem que se amplie seu alcance para além do mero
momento eleitoral, o que contraria a corrente dominante da teoria democrática que
entende democracia como um método de agregação, pelo mecanismo eleitoral, de preferências
individuais preexistentes e formadas na esfera privada.
Jürgen
Habermas e John Rawls, com base nas suas teorias filosóficas superando a teoria
participacionista elaboraram o conceito de democracia deliberativa, rompendo
com a percepção da democracia como simples método para a agregação de
preferências individuais, buscando a autonomia da participação pública nos
debates que produziriam as normas sociais pelos próprios integrantes da
sociedade, resgatando, assim, o valor fundamental do projeto democrático, como
nem na ágora grega da Antiguidade foi possível realizar.
Enfim,
apesar de representar uma evolução, se compararmos os tempos modernos aos
tempos gregos primevos, a eleição, não se pode negar, atomiza os cidadãos e
reduz a efetividade das identidades coletivas muito mais cruciais para a ação
política dos grupos dominados do que para a dos dominantes.
Se
a democracia deliberativa for adotada como padrão político-constitucional, nas
sociedades sul-americanas, por exemplo, como modelo de legitimação de decisões
coletivas, precisará enfrentar o capitalismo, em especial o financeiro, e a
questão da organização do mundo material e seu impacto no mundo político e,
também muito importante, a questão da pluralização do controle dos modernos
meios de comunicação de massas, sem contar com a importância da defesa dos
chamados direitos humanos.
No
entanto, os defensores da democracia deliberativa precisam entender que a
questão da representação política, mais do que no passado remoto, é
inescapável, e que seus mecanismos de vinculação e mediação dos representantes em
relação aos representados possuem uma centralidade absoluta na discussão sobre
qualquer ordem democrática.
Falhando
nos quesitos acima apontados, a teoria deliberativa será muito mais um entrave
do que uma base para pensar o aprofundamento da prática democrática, num
momento em que a aceitação quase universal da democracia é ameaçada pela
crescente deterioração da confiança dos cidadãos em relação às instituições
representativas que deveriam efetivá-la, como o demonstra o declínio do
comparecimento eleitoral, a ampliação da desconfiança em relação a essas
instituições e às lideranças políticas e, por fim, o esvaziamento dos partidos
políticos.
Deve
ser ressaltado que os meios de comunicação de massas interferem no processo
político partidário e eleitoral, com suas análises e seus apelos convertidos em
imagens virtuais que transformam a realidade macroeconômica e social de
sociedades complexas, em difícil situação de transição, apresentando-as num
quadro de crescimento constante e equilíbrio perfeito que, em verdade, inexistem,
pois o propósito maior das empresas do ramo das comunicações é entregar o poder
a grupos políticos que buscam permanecer liderando por longas temporadas
enquanto favorecem os lucros da imprensa a eles associados..
No
contexto de uma luta permanente pelo poder, as elites dominantes de sociedades
complexas e plurais em processo de desenvolvimento, com a colaboração dos
integrantes de classe controladores dos meios de comunicação, transformam a
política em uma forma de publicidade, um mero espetáculo entre tantos outros,
em uma busca permanente de manutenção de projetos de poder de longo prazo e
grandes margens de lucro para os donos das concessões públicas que vivem da
veiculação de notícias, propaganda e publicidade..
A
este cenário, as instituições democráticas em permanente processo de transição,
nas sociedades mais estabilizadas, respondem com o instituto da
“accountability”, que, de forma ampla, significa, na esteira da obra de John
Stuart Mill, a possibilidade de a sociedade cobrar respostas daqueles
representantes do povo a quem se delega o direito de agir afetando interesses
alheios, ou coletivos, pelos quais cada autoridade governamental deve ser
“accountable”.
Em
poucas palavras, “accountability” política significa a obrigação que os poderes
públicos têm, depois de eleitos, de se responsabilizar por seus atos, como pudemos
ver claramente nos conflitos políticos no Brasil, no caso de Fernando Collor de
Mello, em 1992, em Honduras, em 2009, no caso de José Manuel Rosales Zelaya e
no Brasil mais uma vez, em 2016, no caso de Dilma Vana Rousseff, em que
Presidentes da República foram chamados a responder por suas ações políticas de
governo, obedecendo-se a um enquadramento constitucional e infraconstitucional
legalmente amparado, em cada um desses casos, no princípio da “Rule of Law”
(Império da Lei).
No
ambiente constitucionalista no continente americano, com destaque para países
da América Latina, as opções ideológicas, as preferências políticas e as
inclinações pessoais levam a conflitos políticos em que se confunde o direito
adquirido democraticamente nas urnas, escudando-se no que é legítimo para
afrontar o que é legal, com o direito de cometer ilicitudes.
Assim,
os governantes eleitos comportam-se como se não estivessem obrigados a
responder, por exemplo, por crimes fiscais, como se a obrigação da prestação de
contas pelos gastos públicos não estivesse submetida às leis do país, podendo
afrontar, no caso brasileiro, o Artigo 70 e seu Parágrafo Único da Constituição
de 1988, além de toda a legislação complementar que os acompanha, e pudessem
apelar para organizações multinacionais em busca de defesa para seus atos, mesmo
sabendo que órgãos estrangeiros não podem interferir nas decisões internas e
soberanas dos Estados Nacionais, a não ser nos casos cobertos pelas leges mercatoria, digitalis ou sportiva sob
o amparo de um transconstitucionalismo
que começa a ser acreditado no plano internacional.
Mas
não só a questão da prestação de contas é desrespeitada pelos governantes latino-americanos,
como estamos assistindo no episódio venezuelano, em que um presidente eleito
fracassa na administração da economia do país, e, com fundamento nessa questão
e no desrespeito a direitos políticos da oposição, uma Assembleia Nacional
também eleita legalmente pelas urnas, aciona dispositivo constitucional que
pede a revogação do mandato presidencial, contando com o apoio de milhares de
assinaturas de eleitores encaminhadas à justiça eleitoral, enquanto o primeiro
mandatário busca saídas para não cumprir o mecanismo constitucionalizado.
Por
fim, o constitucionalismo latino-americano vê-se obrigado a discutir
estratégias de aprofundamento de democracia direta em decorrência das
desigualdades sociais que afligem a região, resultado de uma assimetria no
controle de recursos que refletem padrões estruturais que impactam a qualidade
de vida dos cidadãos e que está vinculada a relações de dominação que bloqueiam
a possibilidade de ação autônoma de indivíduos e de grupos fora das esferas do
poder institucionalizado, considerados incapazes por uma desacreditada teoria
econômica da produtividade marginal.
Na
América Latina já não mais existe espaço para golpes de Estado que surjam de
alianças entre lideranças civis e militares, mas no Brasil, por exemplo, a
Suprema Corte de Justiça, na esteira da teoria da sociedade aberta, do jurista
alemão Peter Häberle, exerce um ativismo marcado pela judicialização dos
conflitos políticos e busca encontrar saídas para tais imbróglios sob o amparo
do Império da Lei infraconstitucional, como os Regimentos Internos, ainda que
contrarie posições ideológicas de grupos políticos democraticamente eleitos e
desfaça atos administrativos cujas prerrogativas do poder Executivo para
praticá-los estão legalmente amparadas na Constituição vigente desde 1988.