quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Juan Domingos Perón, o Mercosul e a parábola do pássaro do doce encanto


O bloco de países que formam o Mercosul tem uma história que se assemelha a uma novela de televisão da qual já se sabe o final, graças ao roteiro desencontrado em que, quando menos se espera, surge uma nova trama que passa a dominar o desenrolar da estória, basta observar o túnel do tempo do cenário político-econômico argentino, entre as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XXI, e o país “hermano” nos brindará com um interminável vai-e-vem político que nunca aponta o caminho de decisões que  possam reverter uma incontrolável sucessão de erros dos seus governantes, civis ou militares, democratas ou ditadores, que apenas  aprofundam a recessão naquela que é considerada uma das regiões mais promissoras para a instalação de um processo de desenvolvimento econômico sustentável e duradouro e até de uma aliança com seus vizinhos.

A história registra devidamente o calvário dos argentinos nas mãos de seus governantes no século e meio que se iniciou nas duas últimas décadas do milênio dos oitocentos, fossem eles civis ou militares. No entanto, dentre todos aqueles que tiveram a honra de governar o bravo povo argentino, destaca-se um coronel, Juan Domingos Perón, que esteve no poder por longos anos, com intervalos em que a chama populista peronista nunca se apagou.

Perón foi adido militar de seu país, entre 1940 e 1941, na Itália de Benito Mussolini de quem se tornou um ardoroso admirador e de quem dizia: “O Duce é o maior homem do século!”. O fascínio de Juan Domingos Perón pelo nazi-fascismo explica por que a Argentina se tornou um refúgio para criminosos de guerra nazistas após a Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra, os nazistas da marinha de guerra alemã aproveitavam para descansar em Buenos Aires, às vezes por um mês inteiro de muita farra e bebedeiras e reabastecimento, pois ao deixarem a capital portenha poderiam se deparar com os canhões e torpedos da marinha inglesa. E foi o que aconteceu com o pessoal que servia no Graff Spee, um dos maiores barcos de guerra nazistas que, depois de umas férias em Buenos Aires, ao deixar as águas do Rio da Prata, foram atacados e tiveram seu navio afundado pelos ingleses que os esperavam em uma mortal emboscada oceânica.

Em 1943, Perón inicia sua participação na política argentina como Ministro do trabalho de um núcleo militar que chegou ao poder por meio de um golpe de Estado, mas em 1945 o grupo se dividiu em facções e o nosso herói se aliou à facção que foi derrotada, e foi detido.

Juan Domingos Perón pode ser considerado o mais perverso governante populista argentino, um líder que, durante o primeiro mandato, se aproveitou do carisma de uma de suas esposas, Maria Eva Duarte, a atriz e radialista que - mais tarde, encantou as multidões argentinas com ações assistencialistas como Evita, a Rainha dos Descamisados - pediu ao povo, pelas ondas radiofônicas, que fosse para as ruas exigir a soltura do político que foi detido após participar, em 1945, de uma tentativa fracassada de golpe dentro de um golpe político.

Quatro dias depois de sua libertação, Perón e Evita se casaram, e, em fevereiro de 1946, ele foi eleito presidente para um mandato de seis anos. Nessa época, enquanto ela montava um esquema de assistência social aos pobres e necessitados, ele governava com mão de ferro prendendo e eliminando qualquer cidadão, principalmente políticos, jornalistas ou sindicalistas que denunciassem seus delitos e suas fraudes ou mesmo contrariassem seu governo.

A trajetória vitoriosa de Benito Mussolini incentivou o desejo de Perón de se tornar um ditador em seu próprio país, apoiado também por um partido único como na Itália fascista, e ele lutou para que seu país fosse também dominado por um partido único, um partido “Justicialista”.

Em 1951 Evita adoeceu gravemente, descobriu-se que a sua doença era um câncer uterino e ela veio a falecer em julho de 1952, e a Argentina foi tomada por uma catástrofe, e ao longo de meses e anos o povo argentino continuou pranteando a mulher que havia se tornado uma lenda, principalmente aqueles que foram beneficiados pelos programas de assistência social.

Enquanto Evita lutava contra a doença, Perón foi reeleito presidente para mais um mandato que deveria durar de 1952 a 1958, mas seu segundo governo foi um fracasso. Perón perseguiu a Igreja Católica e a imprensa que o ajudaram a se eleger e se reeleger, nesse segundo mandato. Apesar da ferocidade com que perseguia seus desafetos, individuais ou institucionais, Juan Domingos Perón foi defenestrado do poder presidencial em 1955 e partiu para o exílio, deixando milhões de órfãos de um regime assistencialista que o Tesouro argentino não tinha condições de sustentar. Mas o capital político peronista, vigente por mais de meio século, permanece como uma maldição sobre o destino político da Argentina.

Uma das atrocidades macabras de Perón foi ter feito o cadáver embalsamado de Evita perambular entre Buenos Aires e as cidades de Roma e Milão, na Itália e Madri, enquanto ele residia na capital espanhola, e mais tarde de volta a Buenos Aires. Tal atrocidade foi repetida contra o próprio Perón, pois depois de morto aos 77 anos e sepultado no cemitério de La Chacarita, os peronistas profanaram sua sepultura para lhe decepar as mãos, uma loucura que só o fanatismo mais tresloucado pode cometer.

Perón foi também a principal liderança argentina responsável pelo incentivo à violência, tendo patrocinado a criação do Movimento Peronista Montonero, grupo rebelde nacionalista radical que sequestrou e assassinou o ex-presidente Pedro Aramburu, “julgado e condenado à morte” pelos terroristas em cárcere privado e morto com um tiro na nuca, porque convocou eleições e não permitiu que os comunistas e os peronistas se candidatassem.

 Perón queria ver a violência corroendo o tecido social do país, enquanto preparava o próprio retorno à presidência por meio de um golpe eleitoral: fez o peronista Héctor Cámpora candidatar-se a presidente da República em 1973, e o elegeu com os votos peronistas, e fez o seu candidato renunciar dois meses depois de eleito, mas não antes de obter o direito de retornar à Argentina, e com os direitos políticos também readquiridos.

No período em que Perón esteve exilado na Espanha e proibido de retornar à Argentina, além dos Montoneros, o país viu surgirem outras organizações terroristas, entre elas as Forças Armadas Revolucionárias (FAR), de tendência marxista-peronista; as Forças Armadas de Libertação (FAL); O Exército Nacional Revolucionário (ENR); e o trotskista Exército Revolucionário do Povo (ERP).

De posse de seus direitos políticos, como qualquer outro cidadão, e com a renúncia de Héctor Cámpora, o caminho ficou livre para Juan Domingos Perón se candidatar à presidência da República mais uma vez, em 1973, e ele elegeu-se emplacando María Estela Martínez de Perón como vice-presidente. Esta senhora foi uma descoberta de Perón no Panamá, na caminhada do exílio em direção a Madri, enquanto ela trabalhava como bailarina em um clube noturno da capital panamenha. À época, ele tinha 60 anos e ela, 25. Perón sempre gostou de mulheres mais jovens que ele e até de ninfetas, como Nellida Rivas, de 13 anos de idade, que descobriu após a morte de Evita, e de cujo estupro ele foi acusado e sofreu um processo em 1955.

María Estela Martínez de Perón recebeu o epíteto de Isabelita, e tornou-se presidenta da Argentina após a morte de Juan Domingos Perón, mas foi deposta por um golpe de Estado, em 1976, e substituída por uma junta militar. Isabelita foi acusada pelo desaparecimento de mais de 600 pessoas durante o seu período de governo. Ela teve como conselheiro um astrólogo, José López Rega, apelidado de El Brujo, cuja expressiva atuação junto a Isabelita deu origem ao trocadilho “La plantó Perón y López Rega”!,  um jogo de palavras muito usado pelos argentinos à época.

A junta militar que substituiu Isabelita era formada pelo general Jorge Videla, pelo almirante Emílio Massera e pelo brigadeiro Orlando Agosti. Os militares que sucedem o ciclo político de Juan Domingo Perón, nas tentativas de “desperonizar” a Argentina, a mergulharam nas trevas. Qualquer resistência civil ou terrorista era massacrada pelos militares no poder, que além de torturarem barbaramente aqueles que eram aprisionados em seus quartéis, os atirava de aviões no alto mar, amarrados um ao outro como numa tira de linguiça. Comparada à violência da repressão militar argentina, a repressão militar brasileira pode ser considerada uma ação de amadores, mesmo assim, no Brasil, os militares praticaram muita tortura e muitos crimes.

Jorge Videla ocupou a presidência por cinco anos, e ele foi implacável na perseguição e destruição dos grupos terroristas atuantes no território argentino, mas acabou substituído por outro general, Roberto Viola que, a sua vez, foi substituído pelo general Leopoldo Galtieri, que lançou o país numa guerra pelas Ilhas Malvinas, ocupadas pelos ingleses há mais de um século, e que a chamavam de Falkland. Em três meses a Argentina conheceu o gosto de uma derrota humilhante para os ingleses. Em 15 de junho de 1982 a Argentina se rendeu e dois dias depois o general Galtieri renunciou.

Após a renúncia do general Galtieri, uma junta militar convocou eleições e devolveu o poder presidencial aos civis, confirmando a prática sucessória argentina. Em outubro de 1983 os argentinos elegeram um novo presidente civil, e Raúl Alfonsin, um político filiado à União Cívica Radical (UCR), foi o escolhido, e o clima político mudou, embora a economia continuasse ingovernável e os grupos guerrilheiros continuassem praticando barbaridades.

O governo de Raúl Alfonsin chegou ao fim com uma inflação de 200% ao ano, além de enfrentar três tentativas de golpe militar e outras rebeliões no decorrer dos seis anos em que esteve na presidência.
Para substituir Raúl Alfonsin, os argentinos trouxeram de volta um peronista, Carlos Menem, que, numa tentativa de resolver os problemas da economia argentina, lançou um programa de privatizações que desagradou aos peronistas e à esquerda que o ajudaram a se eleger. Menem conseguiu se reeleger em 1995, mas seu segundo mandato seria um desastre.

Os peronistas perderam as eleições presidenciais em 1999, vencidas por Fernando De la Rúa, da UCR, que cumpriu apenas dois dos seis anos de mandato, e renunciou após ver fracassar seus planos de austeridade e assistir o país mergulhar em novo caos social e econômico.

O drama político argentino é único: após a renúncia de De la Rúa, o país teve quatro presidentes provisórios em duas semanas, até que o Congresso Nacional elegesse Eduardo  Duhalde para completar o mandato do presidente renunciante, que seria concluído em 2003.

Néstor Kirchner é o próximo político a se eleger presidente da República Argentina, para o período de 2003 a 2007. Nas eleições de 2007, Néstor Kirchner consegue eleger sua esposa, senadora Cristina Kirchner, presidente da República com pouco mais de 40% de votos.

Durante um longo espaço de tempo, o marido por um mandato e a esposa por mais dois, os argentinos foram governados pela família Kirchner que, revelam inúmeros textos acadêmicos e jornalísticos argentinos, com o marido e a esposa sobraçando as rédeas do poder Executivo como se estivessem administrando uma empresa de sua propriedade particular, graças ao populismo peronista que encanta e domina o eleitorado argentino.

Morto o marido Néstor Kirchner, após uma crise cardíaca, em 2010, o povo argentino elegeu a esposa, Cristina Kirchner, presidenta do país, pela segunda vez. E esta senhora, antes eleita senadora por muitos anos, deu continuidade ao projeto político populista do esposo, terminando, como não poderia deixar de ser, enredada em acusações e processos de assaltos aos cofres públicos, e até do assassinato de um promotor público que reuniu provas sobre seus delitos, que a impediram de se candidatar, mais uma vez, à presidência da República Argentina.

Mas, mesmo enfrentando dissensões dentro do partido peronista, Cristina Kirchner conseguiu fazer parte como candidata à vice-presidência e eleger-se na chapa presidida por Alberto Fernández, seu inimigo peronista, que, por sua vez, só a aceitou para poder receber os votos cativos que pertencem à família Kirchner, e assim derrotar ao candidato Mauricio Macri, ocupante da cadeira presidencial. E assim os peronistas retornaram ao poder nessas eleições de 2019, deixando no ar a expectativa de possíveis enfrentamentos entre a facção “justicialista” de Cristina Kirchner e aquela liderada pelo presidente eleito, Alberto Fernández.

Enfim, espero que este breve resumo da história política argentina nos últimos cento e quarenta anos, mostre como é difícil articular qualquer tipo de aliança econômica com este país “hermano”, tendo em vista que os próprios argentinos encontram muita dificuldade para construir o próprio caminho político sustentável e de longo prazo que dê ao país o equilíbrio e a estabilidade necessários para gerar a credibilidade exigida por tratados político-econômicos regionais de longa duração.

Juan Domingos Perón e Getúlio Vargas tentaram concretizar um projeto de integração regional, depois Juscelino Kubitscheck sonhou com essa possibilidade e, finalmente, José Sarney e Raul Alfonsin conseguiram convencer o Uruguai e o Paraguai a participarem da empreitada, e, em 26 de março de 1991, foi assinado o Tratado de Assunção que deu início ao processo de constituição de um mercado comum na região do Cone Sul latino-americano.

No decorrer de uma década e meia, intensas trocas comerciais entre os parceiros resultaram em um incremento de alguns bilhões de dólares que alimentaram as economias dos países integrantes do Mercosul, com vantagens crescentes para o Brasil e a Argentina e queixas do Paraguai e Uruguai apontando as desvantagens acumuladas, principalmente em decorrência das escalas de produção de suas indústrias e do tamanho de seus mercados internos.

Apesar dos desencontros no Mercosul, vantagens comparativas foram estabelecidas e compensações foram criadas e usufruídas pelos parceiros menores, ainda que não se tenha logrado integrar cadeias produtivas das economias dos países parceiros, sequer entre os dois parceiros mais ricos, como inicialmente previsto, o que possibilitaria, por exemplo, vantajosos acordos comerciais com outros blocos comerciais mundo afora.

Dividido entre dois senhores, o econômico e o político, o projeto do Mercosul sucumbiu torpedeado pelo tiro de misericórdia da insanidade bolivariana do venezuelano Hugo Chávez, que, ao invés de dedicar-se ao projeto maior do desenvolvimento regional integrado, apoiou e incentivou os projetos de poder político liderados pelos líderes que se diziam de esquerda na Argentina, no Brasil, na Bolívia, e no Equador, vencedores dos pleitos eleitorais naqueles países, acreditando que se tornaria o líder de todos eles. Hugo Chávez chegou a comprar cerca de nove bilhões de dólares em títulos da Argentina, para ajudar a suprir a falta de crédito dos Kirchner no mercado externo, além de apoiar a eleição de Cristina transferindo, sem o devido registro obrigatório, alguns milhares de dólares norte-americanos, o que foi descoberto por acaso pela aduana argentina.

Na Nicarágua se divulga, no boca-a-boca, a estória do passarinho do doce encanto: uma ave de bela plumagem e cores deslumbrantes que voa sobre as cabeças dos cidadãos, incitando-os a capturá-lo, mas, se alguém o agarra, transforma-se e deixa-lhes nas mãos apenas um montão de excremento.

 A lenda nicaraguense do doce pássaro do encanto serve para ilustrar o que aconteceu com o projeto de desenvolvimento integrado do Mercosul, pois justamente no momento em que mais se necessitava da união de todos os projetos nacionais dos parceiros para integrar suas economias e negociar em conjunto com as demais regiões já globalizadas, embarcou-se na proposta chavista de enfrentamento do capitalismo, projeto bolivariano que transformou-se em um montão de excremento nas mãos dos dirigentes sul-americanos que sonharam em edificá-lo.

Desse monte de excrementos que sujam as mãos dos chamados governantes de esquerda, destaca-se o verme da corrupção que se ceva nas empresas do Estado e aflora com tanta intensidade e voracidade que não mais pode ser escondido do cidadão comum, que conduziu pela mão do sufrágio universal os dirigentes de esquerda ao poder em tantos países sul-americanos.

Finalizamos este texto, que tem como tema principal o Mercosul, concluindo que se os argentinos continuarem divididos em suas decisões políticas internas, agora acrescidas da defesa do fracassado sonho bolivariano do falecido Hugo Chávez, e continuarem tentando se intrometer na política interna brasileira, aos gritos de “Lula livre!”, nunca passaremos de apenas trocas comerciais entre o Brasil e a Argentina, o que não necessita da formação de um grande e respeitado bloco comercial internacional para acontecer.

No impasse político em que se encontra, o Mercosul jamais se viabilizará, nem no contexto sul-americano e nem tampouco no cenário internacional globalizado, porque se mostra frágil em decorrência do desgastante embate entre duas visões de mundo que se dizem contrapostas, uma de direita e a outra de esquerda, cujos representantes, em especial na Argentina, uma vez assumindo o poder presidencial, procuram desfazer quaisquer decisões de políticas públicas que tenham sido tomadas e implementadas pelo adversário destituído, ainda que eleito em pleitos livres e democráticos, não demonstrando qualquer apreço pelo destino econômico do país nem tampouco o da região. 

Ao Brasil restará tentar fazer sobreviver apenas trocas comerciais com a Argentina, nosso terceiro parceiro no mundo globalizado, depois dos Estados Unidos e da China, porque dificilmente conseguiremos negociar o adequado funcionamento do bloco econômico do Mercosul, pelo menos enquanto os líderes argentinos no poder continuarem a defender a liberdade de um líder político brasileiro já condenado pela justiça brasileira - a quase trinta anos de cadeia, em decorrência de delitos cometidos e comprovadamente apurados.

Os políticos latino-americanos não admitem ser obrigados a pagar pelos crimes que venham a cometer enquanto estiverem no exercício de cargos e funções públicas, em um total desrespeito para com os demais cidadãos, a despeito de conhecerem o exemplo do Peru, que julgou e condenou seu ex-presidente Alberto Fujimori a mais de trinta anos de cadeia. Muitos outros países, com destaque para a Coréia do Sul, condenaram e continuam condenando presidentes e ex-presidentes da República à cadeia pelos crimes que cometeram ou venham a cometer no exercício de suas funções ou cargos, pois todo cidadão, independente do cargo que ocupem na sociedade ou da riqueza que amealhem, estão sujeitos às penas da lei e a pagarem pelos delitos cometidos.

domingo, 8 de dezembro de 2019

A imprensa brasileira obedece a qual comando: à direita ou à esquerda volver?



Nós, brasileiros, quanto mais lemos os artigos, as colunas ou as reportagens em jornais diários e nas revistas semanais de notícias, tanto mais nos confundimos, pois nunca sabemos de qual lado do espectro binário da política estão os profissionais brasileiros da imprensa, e isso tanto nos textos escritos quanto nas falas transmitidas pela televisão ou pelo rádio.

É bom deixar bem claro que os jornalistas, pelo menos no Brasil, desfrutam da mais ampla liberdade para pensar e escrever e falar sobre o tema que mais lhes possa interessar.   

Por exemplo, em uma das principais revistas semanais, a Isto É, podemos ler uma reportagem sobre a recente defenestração de Evo Morales, indígena aimará boliviano que se encantou com o exercício da Presidência da República da Bolívia, no poder já por três mandatos, desde 2005, e tudo indica dela não pretendia arredar o pé.

A revista Isto É, de 20 de novembro de 2019, divulga que “Não fosse o apego doentio de Morales ao poder, ele poderia ter entrado para a história como o primeiro presidente a conseguir o inimaginável: dar à Bolívia a estabilidade econômica com crescimento de 5% ao ano”. E logo conclui: “O desejo de perpetuação no poder acomete demais governantes latino-americanos, Brasil incluído”. E, em seguida, completa: “Vale recordar, por exemplo, que Jair Bolsonaro atravessou a campanha falando em não se candidatar à reeleição. Pisou o Planalto e deixou claro que palavras de palanque são feito vento: ele quer ser reeleito. Até as pedras do Planalto sabem que, por sua vontade, se manteria no poder”.

Pela legislação vigente, Jair Messias Bolsonaro, o presidente eleito por maioria de votos populares para o período compreendido entre 2019 e 2022, tem todo o direito de se candidatar a uma reeleição, e não mais do que a mais uma reeleição. O que explicaria a contrariedade da revista Isto É com esse direito do presidente eleito de tentar se reeleger?

Já a revista Veja, em seu número de 20 de novembro de 2019, no texto de sua última página, um dos seus principais articulistas afirma que: “A crise na Bolívia representa um lamentável retrocesso, não só para esse país, mas para o conjunto da América Latina”. E mais adiante conclui: “No máximo de boa vontade, a ação dos generais da Bolívia pode ser chamada de contragolpe”.

A conclusão do excelente articulista, reproduzida na última linha do parágrafo anterior, nega toda a sua explicação de que o líder aimará boliviano tentou por três vezes, antes de sua destituição, manter-se no poder e para tanto cometeu três falcatruas.

A primeira fraude de Evo Morales aconteceu em 2016, ao desrespeitar o resultado da consulta popular que rejeitara a possibilidade de ele disputar um quarto mandato, e Morales sacou a desmoralizante desculpa de que, ao barrar a sua candidatura se desrespeitava o direito, assegurado a todos os cidadãos, de votar e ser votado; ainda nessa época, Morales cometeu a segunda fraude, ao manipular o Poder Judiciário para contar com a decisão subserviente de juízes por ele nomeados, que atenderiam prontamente a seus anseios de continuar exercendo o poder em seu país, mesmo que ilegalmente. 

Por último, num terceiro abuso, cometeu a terceira falcatrua, a mais infame, criando um apagão da rede elétrica quando as urnas apontavam um segundo turno eleitoral, o que levou à contagem manual dos votos. Quando a luz voltou, a contagem dos votos já apontava a vitória de Evo Morales com folga suficiente para não haver a necessidade de um segundo turno.

A última fraude cometida por Evo Morales levou a uma reação popular pedindo uma auditoria da OEA que observava e fiscalizava o processo eleitoral boliviano. No domingo pela manhã, os representantes da OEA declararam haver indícios de fraude e recomendaram a realização de outra eleição. E tudo isso foi prontamente relatado pelo admirado jornalista da revista Veja.

Por fim, a revista Veja declarou: “A instabilidade das instituições, seu desrespeito por setores da sociedade e sua manipulação pelos detentores do poder – esse é o ponto central, que faz da América Latina uma região subdesenvolvida e folclórica”. E antes dessa afirmação a revista Veja afirmou: “A destituição de Evo Morales reaviva os clichês que tornam a América Latina tão típica. Um deles é discutir, depois do golpe, se o golpe foi golpe”. E aproveitando-se dessa constatação, completou, no mesmo texto: “Temos então três golpes de Morales contra um dos generais”.

Para o profissional da revista Veja, na manifestação dos generais para explicar a destituição de Evo Morales, eles afirmaram, “num toque de delicadeza”, que apenas “sugeriram” que o líder boliviano renunciasse ao mandato presidencial cujo período de vigência se encerraria dentro de pouco tempo.

Ora, minha gente atenta aos fatos políticos, não só por estas bandas - mas no mundo inteiro, o jornalismo brasileiro esqueceu que a Coréia do Sul tem quatro presidentes cumprindo sentenças condenatórias por crimes cometidos no exercício dos mandatos, e até uma presidente, fechando uma lista de cinco presidentes encarcerados por delitos perpetrados na vigência dos respectivos mandatos. E no caso da presidente, vale destacar, ela sofreu a pena ainda no exercício do mandato presidencial. Aliás, vale assinalar que a presidente sul-coreana foi condenada inicialmente a 24 anos de cadeia, e logo depois, a mais oito, perfazendo um total de 32 anos de cana, sem direito a cana na cela.

Este acontecimento sul-coreano, de condenar cinco presidentes da República à cadeia por delitos cometidos no exercício de seus respectivos mandatos, não serve de exemplo nem merece nenhum tipo de referência nas reportagens das revistas brasileiras que abordam a destituição de Evo Morales, o primeiro indígena a ser eleito por três vezes presidente boliviano, e que desejava, mesmo contrariando a legislação do país, ficar por mais tempo no exercício do poder.

Como será que os profissionais que escrevem reportagens para as revistas Veja e Isto É considerariam a Coréia do Sul, à semelhança do que dizem da Bolívia e do Brasil? Como um país também inserido numa “região subdesenvolvida e folclórica”, graças ao número de ex-presidentes da República cumprindo penas de reclusão pelos crimes políticos cometidos? Ou levariam em consideração á síndrome do cansaço democrático, que toma conta de todos os países considerados democráticos pelo mundo inteirinho, e criariam uma expressão mais apropriada para descrever o caso coreano? E a Coréia do Norte, uma feroz ditadura comunista, por acaso também não ajudaria a configurar aquela região do planeta como “subdesenvolvida e folclórica”?

No Peru, um país do outro lado da fronteira brasileira, o ex-presidente Alberto Fujimori foi condenado a muitos anos de cadeia em decorrência de crimes cometidos no decorrer do exercício de mandatos presidenciais, e continua mofando na cadeia, com saídas permitidas para tratamento de saúde em hospitais do país, devidamente acompanhado e vigiado por escoltas policiais. Mas nenhum comentário foi feito sobre a detenção de Alberto Fujimori no Peru, nas reportagens das revistas brasileiras. Nem tampouco sobre a rejeição do povo peruano à candidatura da filha de Alberto Fujimori à presidência do país.

Ao povo resta o direito de se recusar a aceitar políticos que quebram a dentadura, mas não querem largar a rapadura do poder. E aos militares, cumprirem o que manda a constituição do seu país, em apoio aos anseios do populacho.

Parece que a ideologia atrapalha e cega os nossos jornalistas, e assim os fatos singulares, como este caso boliviano, um acontecimento que determina a história, algo considerado improvável de acontecer por sua radicalidade, por se constituir numa inversão de forças, ainda que provocado voluntariamente pelo presidente destituído, levando à sua queda de um poder já em processo de conclusão legal, exercido durante quatorze anos, de 2005 a 2019, sem que fosse molestado pelos militares, é tratado de modo parcial pelos nossos jornalistas, em duas revistas de tanta importância como a Veja e a Isto É.

Nossa imprensa está dominada pelo pensamento único de uma visão de mundo que só aceita o poder exercido pelos mesmos indivíduos, a maioria da nossa imprensa se recusa a aceitar que os últimos governantes brasileiros que estiveram no poder - como Evo Morales também por quatorze longos anos - cometeram crimes contra organizações de governo, assaltando as finanças dessas instituições sem dó nem piedade, e, por isso, perderam a confiança da sociedade e não merecem mais retornar ao poder.

Os nossos jornalistas, com algumas exceções, não aceitam a decisão popular exercida pelo voto que escolheu alijar do poder aqueles que nele permaneceram por quase quatro mandatos presidenciais, e, como no caso boliviano, não aceitam a destituição por impedimento de uma presidenta que manipulou finanças públicas como não devia e nem podia, mas que, apesar de destituída do poder, continuou com seus direitos políticos assegurados e em liberdade para utilizá-los, por decisão arranjada por um juiz do Supremo Tribunal Federal.

Nessa hora, a imprensa brasileira calou-se, e muito pouco falou sobre tamanha excentricidade, se comparamos este desfecho do caso Dilma ao desfecho do mesmo fato do impedimento e cassação dos direitos políticos de Fernando Collor de Melo por oito anos, em 1992.

A propósito do impedimento da presidenta brasileira, que não pode mais continuar exercendo a presidência da República, mas continuou gozando dos seus direitos políticos - ao contrário de Fernando Collor de Melo em 1992, que os teve cassados como manda a Constituição vigente - em 2018 ela candidatou-se ao cargo de senadora por Minas Gerais, seu estado natal, e não conseguiu se eleger!

Como é da tradição política popular, o cansaço - quem sabe mais um elemento a ser considerado dentre aqueles que podem ser incluídos como variável do mecanismo de accountability, o povo mineiro mostrou-se cansado de Dilma Rousseff, não teve mais paciência para suportar seus discursos empolados e indecifráveis nem seu desempenho administrativo. E quando o povo se cansa de um político, as urnas são implacáveis nas eleições que se seguem, e o eleitorado nunca os perdoa pelos erros cometidos, sejam eles quais forem.

Preciso de um parêntese, para lembrar que a nossa imprensa não aceita o excepcional acontecimento eleitoral que levou ao poder presidencial uma gente que pensa diferente dos seus antecessores, e continuar lembrando o caso recente de Evo Morales.

O acontecimento boliviano significou uma descontinuidade, uma transformação na qual os generais cumpriram a parte que lhes tocava conforme ditam as constituições de hoje, submetendo-se ao interesse de uma população que, na sociedade do desempenho, já estava cansada do “sempre mais do mesmo” que lhe era oferecido por Evo Morales após três mandatos presidenciais. A população boliviana queria mudanças que lhe fossem oferecidas por outro presidente que não fosse o mesmo que já conheciam de longa data.

Os bolivianos cansaram de tanto Evo Morales, como os brasileiros cansaram de tanto Luís Inácio Lula da Silva. Assim como os peruanos cansaram de tanto Alberto Fujimori. E assim é a democracia, os cidadãos cansam de seus eternos líderes. O povo inglês cansou do grande líder Winston Churchill, e não o reelegeu para o parlamento inglês após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, para cujo final ele tanto contribuíra de forma inegável e decisiva, uma atitude política perfeitamente reconhecida pelo mundo inteiro. Mas o povo inglês cansou de tanto Churchill.

A imprensa nacional, em sua grande maioria, enfatiza e interpreta qualquer declaração dos generais brasileiros como geradora de instabilidade política, mas ignora aquelas declarações dos líderes que se dizem de esquerda em nosso país, açulando o povo para uma revolução, por exemplo, quando assim se expressam: “A gente tem que seguir o exemplo do povo do Chile e atacar (Luís Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República, condenado em Segunda Instância a cerca de doze anos de cadeia, mas livre para falar o que lhe vier à cabeça); “Não há revolução sem sangue (Benedita da Silva, parlamentar petista)”; “Tem que fechar o STF (Wadih Damous, advogado e parlamentar petista)”; “Vamos fazer uma guerra civil (líder da CUT)”; “Vamos incendiar o país (líder do MST)”; “Vamos tomar o poder, o que é diferente de ganhar eleição (José Dirceu, um dos principais líderes petistas, ex-chefe da Casa Civil do governo Lula, em liberdade, embora condenado à prisão)”; “Estamos torcendo para que o Brasil vire um Chile (Juliano Medeiros, presidente do PSOL)”; “A hora do Brasil vai chegar (Humberto Costa, senador pelo PT)”; “O povo quer violência revolucionária, o povo quer luta, está sedento de passar a faca em todos os seus inimigos (representante da Liga dos Camponeses Pobres na Uerj)”; “Quem tentar conciliar este país vai ser atravessado com um trator nas costas (sic) (Vladimir Safatle)”; “Com a direita e o conservadorismo , nenhum diálogo. Luta! (Mauro Iasi); “Isso implica ir para as ruas entrincheirados,  de armas na mão (sic) (Wagner Freitas)”. 

Nenhuma dessas ameaças de intolerância política, que claramente instigam a violência contra a liberdade em nosso país - cuja ausência atingirá com certeza a liberdade de jornalistas expressarem o que pensam, mereceu qualquer comentário da nossa imprensa, mesmo que com “toques de delicadeza”, como talvez dissesse o nobre articulista da Veja.

Mais uma contradição bem brasileira da nossa imprensa: enquanto os generais arreganham os dentes alardeando que têm 300 mil homens em armas e têm a missão de garantir os princípios constitucionais - e a imprensa alardeia o fato, o principal líder de esquerda, condenado a doze anos de cadeia numa primeira sentença transitada em julgado, e já preso, enquanto recebia uma segunda condenação em sentença transitada em Segunda Instância que lhe aplicou mais dezessete anos de prisão por mais crimes de corrupção, ganhou um livramento temporário da primeira condenação, autorizado pelo Supremo Tribunal Federal, e foi para as ruas convocar o povo para uma revolução que nos levará, com certeza, a uma ditadura sob o talante de dirigentes de esquerda - mas a imprensa pouca importância para este fato.

Uma imprensa livre dirá que ambos os fatos acima descritos apontam para conflitos característicos de uma democracia. E temos que tentar por a cabeça no travesseiro ao som de tanto barulho, e tentar adormecer.

Enfim, a imprensa brasileira bota a boca no trombone para denunciar declarações inoportunas de generais aposentados ou ainda em serviço, mas se cala, inexplicavelmente, quando se trata de declarações instigadoras de pretensões revolucionárias que podem levar o país a uma dominação pela esquerda autoritária, incompetente,  desonesta e barulhenta, como ficou provado em quatorze anos nos quais exerceu a Presidência da República, e que, para piorar o seu perfil partidário, não admite a democrática alternância no poder.

 Aqui, entre nós, no meu Brasil brasileiro são notícias desse teor que, no meu entender, se contradizem - mas não se anulam - e nos deixam desorientados procurando entender se a imprensa se volve à esquerda ou se ela se perfila à direita. Na parte que me toca, acredito que no nosso meio jornalístico se aninha o ovo da serpente do autoritarismo de esquerda. No entanto, cabe a vocês que me escutam decidir-se pela melhor resposta a tão colorido imbróglio em verde-e-amarelo.